Cha Cha Real Smooth - O Próximo Passo | Chega à Apple TV+ uma deliciosa comédia agridoce
Assim como em qualquer profissão, no Cinema há quem aceite um trabalho apenas por dinheiro, como foram os casos (admitidos publicamente) dos cineastas Martin Campbell (com Lanterna Verde) e James Wong (com Dragonball Evolution), mas também há aqueles que exercem a profissão por outras razões, recusando pagamentos vultuosos, e o caso mais recente talvez seja o de Dan Kwan e Daniel Scheinert, que recusaram o comando da série Loki (da Marvel) para dirigirem o cultuado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, projeto pessoal da dupla de realizadores. E é possível engrossar essa lista com inúmeros outros exemplos, citando inclusive atores e atrizes. Por outro lado, o jovem diretor e roteirista Cooper Raiff parece integrar outro grupo de profissionais: aqueles que usam seu trabalho como terapia, seguindo os passos de Lars Von Trier, autor dinamarquês cujo A Casa Que Jack Construiu exorcizava seus demônios internos, construindo alegorias que abordavam desde sua relação com a Arte e a violência presente em suas obras, até seu infame banimento do Festival de Cannes após declarações nazistas.
Em 2020, com apenas 22 anos, Raiff (escrevendo, dirigindo e protagonizando) usou O Calouro (seu filme de estreia), para ir na contramão da indústria hollywoodiana, que quase sempre glamourizou a fase universitária, e contar a dolorosa história de um estudante passando por maus momentos em seus primeiros dias na faculdade. As festas regadas a álcool e a obsessão por relações sexuais em detrimento da dedicação acadêmica está presente no filme, mas como um elemento de oposição à personalidade do protagonista Alex, que por não seguir a filosofia hedonista de seus colegas, acaba experimentando a solidão, tendo dificuldade para se desprender psicologicamente do ninho familiar. O próprio título original da produção (Shithouse) faz uma brincadeira com a forma com que o calouro pensa de seu novo lar (e tenho certeza de que essa espécie de autobiografia foi concebida durante sua passagem pela universidade).
E se a produção revelava um diretor ainda cru, prolongando pausas dramáticas (inundando a narrativa com constrangimentos) e tropeçando ao tentar se equilibrar entre o drama e a comédia, beneficiava-se de um roteirista que era um verdadeiro diamante bruto: apesar de apresentar alguns diálogos artificiais (especialmente numa discussão dentro de um dormitório), Raiff, demonstrava uma sensibilidade muito particular, além de encontrar soluções criativas para externar os pensamentos de seu solitário protagonista. Já como ator, Raiff não se mostrou tão promissor, esbarrando numa inexpressividade que prejudicou a narrativa em vários momentos. Todavia, fazer seu primeiro filme tendo que dirigir a própria atuação não era uma tarefa das mais fáceis e é preciso reconhecer sua coragem.
Se O Calouro era a forma de Cooper Raiff lidar com sua falta de conexão com o ambiente estudantil, quando utilizava a família distante como porto seguro emocional, Cha Cha Real Smooth expõe suas inquietudes enquanto jovem prestes a entrar na fase adulta (“você acha que já atingiu o seu auge?”, pergunta-se em certo momento), ao mesmo tempo em que dá prosseguimento a vários temas abordados em seu filme anterior, estabelecendo-se como uma continuação espiritual de seu filme anterior.
Cha Cha coloca Raiff no papel de Andrew, que apesar de ter concluído a graduação, ainda não se encontrou profissionalmente, voltando a morar com a mãe (Leslie Mann, do “Netflixiano” A Bolha). Dividindo seu dia entre o trabalho numa franquia de fast food, entrevistas para potenciais empregos e a rotina de casa, ele descobre uma surpreendente vocação para animar festas, após fazer sucesso no Bar Mitzvah de um amigo de David, seu irmão mais novo (Evan Assante, do inédito Wild Indian), onde também conhece Domino (Dakota Johnson, da trilogia Cinquenta Tons) e sua filha adolescente Lola (Vanessa Burghardt), portadora de autismo.
Contando com um prólogo que apresenta com eficiência admirável o centro emocional da narrativa, Raiff não apenas estabelece de forma direta e econômica a relação de Andrew com o amor, como também ilustra a âncora emocional que sua mãe representa. E o momento em que ela, dentro do carro, surpreende o parceiro ao deixar o banco da frente para se sentar ao lado do jovem Andrew, argumentando que seu “bebê” está arrasado, além de cortar o coração, é perfeito para justificar a postura de Andrew e sua infantil dependência da mãe, mesmo mais velho.
Avançando no tempo, finalmente surge Cooper Raiff, compondo Andrew como uma pessoa cuja extrema simpatia ilumina todo os ambientes por onde passa. Dono de um sorriso largo e riso fácil, Andrew demonstra um carinho tão grande quanto sua empatia, o que explica o sucesso que faz com as pessoas à sua volta. Por isso, ao se deparar com uma mãe em dificuldades com sua filha autista, ele não resiste em se aproximar para oferecer ajuda através de um gesto de afeto. Surgindo infinitamente mais expressivo e agindo de forma mais orgânica, Raiff mostra ter evoluído consideravelmente desde sua estreia, não apenas como ator, mas também como diretor.
Merecendo aplausos especialmente por extrair ótimas performances do elenco mirim, cujo destaque inquestionável é o carismático Colton Osorio (em seu primeiro papel com falas num longa-metragem) e sua naturalidade impressionante como o espontâneo Rodrigo, o cineasta também é hábil ao construir gags que se beneficiam de seu timing cômico, algo que não acontecia em O Calouro. Ao lado da fotografia de Cristina Dunlap (do vindouro Am I Ok?, de Tig Notaro) e o design de produção de Celine Diano (As Rainhas de Torcida), ele exibe um apuro visual inédito até então, como na concepção do aconchegante quarto de Lola, mergulhado em tons de azul e investindo numa decoração nada infantil (ilustrando a personalidade da moça) ou ao diferenciar dramaticamente a cozinha da casa de Domino (mesclando tons amarelados com móveis de madeira) daquela da casa de seu padrasto Greg (Brad Garrett, presença constante em produções da Disney), predominantemente branca, sem vida.
O conturbado relacionamento entre Andrew e Greg é mais um capítulo na história de Cooper Raiff com figuras paternas: Em O Calouro, a ausência do pai era sentida através dos diálogos melancólicos entre o Alex e sua mãe, que criou sozinha o casal de filhos e jamais tornou a se casar, ao passo que aqui, a mãe do herói está morando com um bem-sucedido “sessentão puritano”, de acordo com o próprio Andrew, que rejeita a bem-intencionada postura paternalista do homem.
Outro ponto em comum com O Calouro e ainda mais revelador sobre Cooper, é a repetição do arco do jovem de coração partido, desta vez com Andrew sendo rejeitado já nos primeiros minutos de projeção, no supracitado prólogo que serve para construir as bases de sua visão sobre o amor, encarado com a mesma inocência romântica que acometia Alex e o aproximava dos personagens da filmografia de Woody Allen.
Construindo linhas de diálogos que deixariam Allen orgulhoso (“não sei dizer se você está controlando um desejo de se aproximar ou de se afastar”), Raiff vai costurando uma trama que abarca tantos temas que fica difícil até para ele dar a atenção que cada um merece ao final. Quem sofre com isso é a mãe de Andrew, cuja bipolaridade só é mencionada uma vez e jamais retorna. Em contrapartida, a forma suave (com o perdão do trocadilho) com que Cha Cha Real Smooth aborda a depressão merece elogios – e o momento em que Andrew pergunta a Domino sobre como é a sensação de estar deprimida, impressiona pela síntese certeira feita por ela: “às vezes é mais fácil ser triste” -, principalmente em virtude da atuação discreta, mas repleta de nuances de Dakota Johnson, uma atriz cada vez mais interessante.
Novamente filmando o sexo de forma casual (a ponto de incluir uma camisinha sendo descartada), Raiff demonstra maturidade ao elaborar os relacionamentos amorosos sem descambar para o melodrama ou para as frases tiradas de livros de autoajuda, tão comuns em obras do gênero, culminando em desfechos sóbrios e realistas. Incluindo espaço até mesmo para debater sobre o bullying, Raiff acaba pecando esporadicamente por adicionar elementos sem qualquer embasamento prévio, e o alcoolismo repentino de um personagem chega a assustar de tão brusco.
Encerrando a narrativa com uma sequência tão impactante como a do prólogo, Cha Cha Real Smooth – O Próximo Passo, é uma deliciosa comédia sobre amadurecimento, com personagens tão bem construídos e situações tão envolventes que fica difícil não se identificar, principalmente, com seu adorável protagonista, independentemente da fase em que se esteja na vida.
NOTA 7
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