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'Como Treinar o Seu Dragão' se destaca por adaptação ipsis litteris da animação

  • Foto do escritor: Guilherme Cândido
    Guilherme Cândido
  • 8 de jun.
  • 4 min de leitura

Quando uma animação adorada é adaptada para o live-action com pouca fidelidade para com o material original, a reação do público tende a ser a pior possível. Mas afinal, qual seria a melhor maneira de traduzir os desenhos para a filmagem tradicional? Convenhamos que se trata de um desafio tremendamente arriscado para os estúdios. Se é tomada muita liberdade, ao ponto de modificar elementos-chave, as chances de um novo Branca de Neve são grandes. E mesmo que o resultado passe longe do negativo, como Mulan, por exemplo, o espectador talvez não se sinta compelido a ir aos cinemas. Partindo dessa premissa, este Como Treinar o Seu Dragão leva o termo “remake” de forma literal, revelando-se o sonho molhado de quem sempre quis uma adaptação ipsis litteris


Para alcançar esse nível de fidelidade, nada mais natural do que trazer de volta Dean DeBlois, co-diretor e co-roteirista da animação e que se certifica não apenas de recriar momentos específicos, mas também de reproduzir cada plano com uma precisão quase cirúrgica, impactando inclusive nos próprios atores. Um exemplo é a sequência de ação inicial, na qual até os movimentos de câmera são os mesmos, mas o mais impressionante é ver Gerard Butler repetindo o gesto de Stoico, o Imenso ao tirar um estilhaço flamejante de seu ombro. Butler, claro, dublou a versão animada do personagem, cujo nome vem justamente do jeito blasé com que encara o perigo. Seguir de perto a produção de 2010 traz sua própria parcela de riscos e leva DeBlois a repetir acertos, mas também a cometer os mesmos erros.

A jornada de Soluço, que começa como um desajeitado aspirante a guerreiro viking e se descobre um domador de dragões capaz de mudar a mentalidade de sua aldeia, permanece como um dos acertos do roteiro baseado na série literária de Cressida Cowell, bem como o laço que forja com Banguela, aquele que deveria ter sido sua primeira vítima e se torna seu companheiro mais leal. O arco da dupla se entrelaça com eficácia dentro de um modelo pré-estabelecido e funciona como discurso anti-destino. Por outro lado, mesmo que aumente as menções à mãe do jovem protagonista, seu destino trágico jamais ganha relevância suficiente dentro da trama, resvalando no mesmo problema que afetou o longa original: a superficialidade. Mas se a animação compensava o desequilíbrio dramático com um tom aventuresco e bem humorado que muito se beneficiou do senso de encantamento, o live-action demandava um esforço maior.

A relação entre Astrid e Soluço, embasada no ressentimento da moça em função dos privilégios do colega como filho do líder da tribo, soa ainda mais rasa, pois nunca vai além de um diálogo raivoso. Nem a talentosa Nico Parker (da série The Last of Us) ameniza a sensação de potencial reprimido da aplicada guerreira, saindo-se melhor na química com Mason Thames. Carismático no regular O Telefone Preto (2021), o texano é extremamente competente ao captar a ingenuidade doce de Soluço sem descambar para a caricatura. Além disso, ele mostra naturalidade ao interagir com os elementos gráficos (contracenar com uma bola de tênis não deve ser fácil).

Falando nisso, ao menos visualmente, Como Treinar o Seu Dragão equipara-se com facilidade à sua contrapartida animada, brindando a audiência com imagens arrebatadoras do norte europeu. A própria Berk já seria digna de elogios, com seu design arrojado ao surgir encrustada numa ilha minúscula que mais parece uma rocha flutuante. Os dragões, diversos em tamanho, forma e coloração, são um triunfo técnico justamente por convencerem sem abandonar completamente o aspecto cartunesco que dominava seus traços. Em contrapartida, os figurinos perdem a oportunidade de manter a progressão da história: Inicialmente cheguei a admirar o fato de Soluço ser o único habitante de Berk a não utilizar vestes de lã (matéria-prima abundante por lá), opção que refletiria seu desencaixe social, mas não demora até o rapaz incorporar o material. Aliás, a alternância entre a lã e o couro só demonstra a falta de coesão do departamento.

Embora a falta de criatividade possa ser justificada pelo apego ao filme de 2010 (ou ao medo de desagradar seus entusiastas), nada impediria a produção de investir na complexidade de seu rico grupo de personagens, aqui retratados no limite da simplicidade. Ora, se houve uma preocupação em incluir atores negros e orientais no elenco (oportunizando o humanismo de um povo famoso pela brutalidade), porque não ceder espaço para desenvolver suas histórias, por exemplo? E qual o sentido de apresentar o pai de Melequento (Gabriel Howell), se não há a intenção de se aprofundar em seu turbulento relacionamento?

No entanto, até quem desconhece a animação conseguirá aproveitar as boas sequências de ação, dirigidas com objetividade por um Dean DeBlois que mal parece assinar seu primeiro longa-metragem em live-action. O canadense não se deslumbra com as possibilidades ofertadas especialmente pelas câmeras IMAX e deixa o comedimento se sobressair em detrimento da megalomania, tão presente em produções comandadas por estreantes. Como um arroz com feijão bem feito, o filme não será lembrado por set-pieces engenhosos, mas cumpre o esperado de uma aventura espetacular por natureza, com o bônus de contar com a (essa, sim) memorável trilha sonora de John Powell, indicado ao Oscar pelos acordes grandiosos, mas que preservam a natureza nórdica através dos instrumentos musicais escolhidos.

Contando ainda com a participação do sempre magnético Nick Frost, Como Treinar o Seu Dragão talvez seja mais bem apreciado por quem não tiver a animação tão fresca na memória, sob pena de soar redundante, mas que ressoará naqueles que se emocionaram com uma das animações mais marcantes da década passada. Os minutos finais, que amarram brilhantemente as trajetórias de Soluço e Banguela (um pouco menos adorável dessa vez), continuam dignos de aplausos pela coragem, mesmo que esse adjetivo tenha passado longe no restante da projeção.


NOTA 7


Observação: Há uma "cena" após os créditos.

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