Festival do Rio 2023 | Dia 1
top of page
  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 1

Atualizado: 29 de out. de 2023


A Prática (La Prática, 2023) | Argentina/Chile


Primeiro filme da maratona do Festival do Rio 2023, A Prática foi também a minha porta de entrada para o Cinema de Martín Rejtman e confesso que a primeira impressão não foi das melhores. Não que o filme seja ruim e sim porque o primeiro ato exige demais de um marinheiro de primeira viagem como eu, navegando nas águas desconhecidas do cineasta e roteirista argentino. O primeiro ato dedica-se a nos apresentar a Gustavo (Esteban Bigliardi, que está em outros dois filmes exibidos nessa edição do Festival: Sociedade da Neve e Os Delinquentes), argentino que trabalha como instrutor de Yoga no Chile, terra-natal de sua esposa (Manuela Oyarzún), cujo relacionamento foi severamente impactado após ela traí-lo. E o roteiro parte daí, acompanhando os percalços de Gustavo enquanto tenta seguir a vida.


À primeira vista, a produção causa estranheza, colocando os atores para recitarem seus diálogos da forma mais mecânica possível. A impassividade com que debatem assuntos importantes e a direção aparentemente burocrática dão indícios de que A Prática será um daqueles filmes quase amadores que acabam entrando de rebote em festivais. A partir do momento em que fica claro que Rejtman está, na verdade, bebendo da fonte do realizador finlandês Aki Kaurismäki, mestre da deadpan comedy (comédia inexpressiva, em tradução livre), a produção cresce exponencialmente. Mas o repertório do argentino não se limita à letargia de seu protagonista (diagnosticada por sua terapeuta, diga-se de passagem), encontrando formas irreverentes de extrair humor da narrativa, como piadas recorrentes (os insultos recebidos por uma personagem próxima de Gustavo), gags físicas, entre outras iniciativas.


Assim, o segundo ato se revela o melhor, proporcionando uma experiência deliciosa enquanto descobrimos como a rotina do protagonista é prosaica, mas não é a única, já que vários personagens recorrem às mesmas opções de lazer, por exemplo. É curioso notar também como o título do longa-metragem acaba sendo justificado dentro da narrativa, ilustrando a relação controversa entre Gustavo e a yoga. Afinal, essa é uma atividade famosa por trazer paz aos seus praticantes, algo que o protagonista (um instrutor!) está sempre longe de conseguir, sendo acometido por lesões e até incidentes no trabalho.


Um desses incidentes, que abre a história, inclusive, sugere que A Prática tomará um rumo mais politizado, colocando uma aluna para questionar o método de Gustavo (“trato todos da mesma forma”, ele garante e o roteiro endossa), mas Reijtman opta por seguir outros caminhos, focando na comédia de situações. Ele, no entanto, acaba se perdendo lá pela metade da narrativa, quando se dispersa ao focar nas desventuras de Gustavo numa floresta, na qual há um notório abuso de planos longos e exaustivas sequências com personagens cantando ao redor de uma fogueira.


Nada que comprometa, pois a produção volta aos trilhos a tempo de fechar sua história de forma satisfatória, especialmente o arco dramático do protagonista: embora seu trabalho, ironicamente, consista em levar paz aos seus alunos, ele está em sofrimento constante, tanto que até sua terapeuta suspeita de uma possível depressão leve. A preocupação de sua mãe pode até divertir em virtude de seus excessos, mas também serve como um sinal do estado psicológico do filho. Além, claro dos vários obstáculos que surgem na vida social do sujeito, tudo elegantemente amarrado no plano final.


É uma forma peculiar encontrada por Martín Rejtman de abordar temas tradicionalmente espinhosos, mas que se não ganham a profundidade que demandam, ao menos não deixam de receber merecidos holofotes.


NOTA 6,5


 

A Natureza do Amor (Simple comme Sylvain, 2023) | Canadá


A cineasta canadense Monia Chokri, que muitos devem se lembrar como a amiga do personagem de Xavier Dolan no bom Amores Imaginários, não costuma se distanciar de temas populares e o amor é um elemento recorrente em sua filmografia. O que acaba se destacando em suas narrativas, no entanto, é seu estilo, seja o narrativo ou o visual. Um exemplo perfeito é Babysitter, seu filme anterior e que escancara não apenas sua inspiração em Pedro Almodóvar, como também seu dom para pegar uma trama aparentemente banal e transformar numa experiência singular.


Naquela produção, Chokri (que também protagonizou) utilizou um relacionamento em crise para construir uma obra feminista carregada de ironia, abordando patriarcado, objetificação e o papel da mulher na Sociedade com uma acidez irresistível. Como se não bastasse, embalou o filme com um senso estético marcante, seja no uso ostensivo do vermelho (Almodóvar, não esqueça...) ou dos zooms dramáticos. A Natureza do Amor segue uma estratégia semelhante, embora Chokri mostre-se um pouco menos inspirada dessa vez.


A trama acompanha Sophie (Magalie Lépine Blondeau, também de Amores Imaginários), uma professora universitária de meia-idade que vive confortavelmente (até demais) com o marido Xavier (Francis-William Rhéaume, de Guia Para Uma Família Perfeita), um teórico com quem possui muito em comum. Mas quando ela conhece Sylvain (Pierre-Yves Cardinal, de Tom na Quinta, outro filme de Xavier Dolan), empreiteiro contratado para reformar sua casa de campo, ela se depara com algumas possibilidades que ela nunca sonhou. Isso porque ela jamais poderia imaginar que se sentiria atraída por um tipo tão diferente do homem com o qual se casou. E não demora até que os dois engatem um intenso relacionamento às escondidas.


Inicialmente, a produção se desenvolve como uma comédia romântica convencional, com a mulher certinha casada com um intelectual entediante se descobrindo apaixonada pelo xucro viril. A própria aparência dos atores faz lembrar O Cravo e a Rosa, novela da Rede Globo em que Eduardo Moscovis e Adriana Esteves emularam a mesma dinâmica vista aqui, embora inspirada em A Megera Domada, de Shakespeare. Assim como os brasileiros, Blondeau e Cardinal possuem imensa química em cena, elevando a produção sempre que se encontram.


Eventualmente, Sophie terá de fazer aquela escolha difícil até entrar em crise lá pela metade final, quando seu verdadeiro amor surgirá implacavelmente para se declarar e conquistar seu coração de vez. Porém, mesmo que isso tudo esteja presente em A Natureza do Amor, corresponde apenas a metade da projeção, já que Monia Chokri tem muito mais a dizer, fazendo com que a narrativa se divida em praticamente dois filmes: um com uma visão idílica do relacionamento do casal e outro focado em desdobramentos mais racionais. Chokri não se contenta em fazer uma comédia romântica, do tipo que faria um sucesso estrondoso no streaming, dando-se o trabalho de ampliar o escopo da narrativa sob o prisma de Sophie.


Com isso, a diretora e roteirista abandona uma história que já estava dando certo, para tentar oferecer um algo a mais ao espectador. É aí que entra em cena o trabalho de Sophie, com intervenções pontuais que procuram destrinchar o título do filme. A protagonista aparece parafraseando filósofos famosos como Platão e Schopenhauer para explicar as complexidades do amor e sua ligação com o desejo, complicando uma narrativa sob o pretexto descartável de trazer profundidade à obra, numa busca decepcionante por relevância.


Chokri levanta debates sobre a humanidade (é impossível não lembrar do Agente Smith de Matrix quando alguém argumenta que o ser humano é “um parasita que só existe para agredir o meio-ambiente"), posiciona-se no espectro político (há críticas contundentes à Direita) e tenta extrair um significado das experiências da protagonista, flertando perigosamente com a prolixidade. Pior, ao buscar um desfecho mais racional, querendo soar realista, ela diminui as conquistas que obteve, sugerindo interpretações polêmicas em seus minutos finais (os motivos que levaram a Sophie a tomar uma determinada decisão).


É uma pena, pois na primeira metade, o longa exala energia e estilo, com a realizadora merecendo fartos elogios à forma como conduziu as tórridas cenas de sexo, que soam elegantes e sensuais. Repare como Chokri opta por focar em gestos e sons ao invés de simplesmente encher a tela com movimentos. Nesse aspecto, A Natureza do Amor consegue ser, com facilidade, tudo aquilo que a franquia Cinquenta Tons de Cinza tentou de forma desesperada, mas falhou miseravelmente. Esses momentos também se beneficiam da predileção da diretora por cores quentes, que ajudam a criar a incandescência demandada.


Investindo em discussões particularmente divertidas sobre a forma como as pessoas se comunicam hoje em dia (há uma alfinetada espetacular no uso em excesso de “tipo”, por exemplo), incluindo uma reflexão que deveria chegar ao maior número possível de pessoas (“uma linguagem desenvolvida leva a pensamentos precisos”), A Natureza do Amor oferece uma história irregular ao abordar um relacionamento que estava funcionando brilhantemente até as coisas ficarem mais complicadas do que deveriam, o que diminui sua eficiência, mas não compromete a experiência.


NOTA 7


 

Trovão (Foudre, 2023) | Suíça

Selecionado pela Suíça para tentar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Trovão começa com a jovem freira Elisabeth (Lilith Grasmug, de Os Passageiros da Noite) recebendo a notícia de que sua irmã, Innocent, morreu. Agora a mais velha, ela deve retornar ao vilarejo onde sua família vive. Lá, além de reencontrar velhos amigos e suas duas irmãs, ela se depara com uma estranha falta de informações sobre a morte de Innocent.


Em seu segundo longa-metragem, a diretora e roteirista genebrina Carmen Jaquier demonstra uma disciplina invejável na condução de Foudre (no original), cujos mistérios se desenrolam pacientemente. Jaquier pode até merecer elogios pela forma eficiente como solta pequenas pistas ao longo da história (um pedaço de madeira com duas iniciais, por exemplo), mas seu maior mérito é não mastigar as informações, permitindo que o espectador monte o quebra-cabeça sem ajuda. Aproveitando a duração enxuta, a cineasta adota um ritmo cadenciado que valoriza o suspense, mantendo o público sempre interessado. Mas a cineasta erra ao exagerar nas referências ao tableau vivant, entregando a elipses pouco verossímeis, como aquela sugerindo que Elisabeth e os amigos passaram horas sentados em silêncio.


Quem será ela: a Virgem ou o Diabo?”, indaga uma das irmãs ao não reconhecer Elisabeth, resumindo com precisão cirúrgica a visão de mundo daquele vilarejo, dominado por dogmas católicos que servem apenas para cercear a liberdade já limitada das mulheres na sociedade (“porque se atormentar quando é simples obedecer?”, alguém pergunta em certo momento”). Chega a ser assustador ouvir a matriarca justificar a ausência da filha adolescente (“ela acabou de se tornar mulher, então foi se desculpar com a Virgem”. Quando a mera menção da palavra “sexo” já é suficiente para escandalizar, qualquer atitude mais radical tende, infelizmente a ser relativizada, o que explica o comportamento dos aldeões quando Elisabeth se aproxima cada vez mais dos amigos.


É interessante, no entanto, como Trovão acabou servindo como uma ótima sessão dupla com A Natureza do Amor, já que ambas as narrativas abordam o desejo como tema central, embora de formas completamente distintas. Resvalando no fundamentalismo religioso que infelizmente permanece presente mesmo em pleno século XXI, o filme ilustra com perfeição a facilidade com que um comportamento considerado inapropriado podia ser encarado como uma “possessão” simplesmente em virtude do total desconhecimento da época.

Mas o maior trunfo da produção é mesmo da expressiva Lilith Grasmug, cuja performance absolutamente estupenda merece ser um divisor de águas em sua carreira. Conseguindo expressar com intensidade o estresse de Elisabeth (note sua pálpebra tremendo em dois momentos-chave), Grasmug é capaz de transmitir apenas pelo olhar, uma infinidade de sentimentos, mas ela é auxiliada pelo departamento de maquiagem e cabelo nesse sentido. Perceba como a menina solta os cabelos quando se considera finalmente livre, por exemplo.


Contando com a ótima trilha de Nicolas Rabaeus, que utiliza o piano para manter a melancolia na atmosfera, Trovão conta uma história que ajuda a entender como a Sociedade funcionava no passado e se ainda não damos o devido valor à Mulher, ao menos podemos ter certeza de que houve uma evolução considerável ao longo dos séculos.


NOTA 8,5


 

A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve, 2023) | Espanha



Em 13 de outubro de 1972, uma tragédia chocou a América do Sul: um avião fretado da Força Aérea Uruguaia, com 45 pessoas a bordo, caiu na Cordilheira dos Andes enquanto partia de Montevidéu para o Chile. Os sobreviventes (menos da metade), no entanto, tiveram de encarar situações extremas enquanto aguardavam um resgate cada vez mais improvável. Adaptada diversas vezes não apenas para o Cinema, mas também para a TV, o “Milagre dos Andes” foi contado pela primeira vez no livro de Pablo Vierci e está programado para engrossar o catálogo da Netflix na primeira semana do ano que vem. Após ser exibido na gala de encerramento do Festival de Veneza, A Sociedade da Neve chega ao Festival do Rio com a pompa de ser o escolhido pela Espanha para tentar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. As chances são reais, pois o comandante da empreitada, o catalão J. A. Bayona tem experiência em filmes-catástrofe (dirigiu O Impossível em 2012).


A projeção começa com um time de jovens jogadores de rúgbi se preparando para sua primeira viagem internacional em momentos captados pelo diretor de fotografia Pedro Luque (da série Penny Dreadful) com cores quentes que ressaltam a vivacidade pulsante dos rapazes. Apesar do roteiro fazer questão de apresentar inúmeros personagens, muitos dos quais sabemos que não sobreviverão, há uma parcela considerável que acaba escanteada e nela podemos destacar a presença de Esteban Bigliardi (coincidentemente também visto em A Prática, primeiro filme do dia), figurante de luxo até conseguir suas primeiras falas já no terço final.


Bayona até se sai bem na condução dessas passagens mais íntimas, ilustrando a camaradagem entre os jogadores e despertando a simpatia do público, mas sua maior força aparece quando finalmente chega o momento do acidente. Ciente do fato de que já sabemos o que acontecerá com o avião, o cineasta limita-se a esticar a corda, mantendo o suspense através de uma turbulência insistente. Nessa mesma sequência, o script aproveita para explicar o que motivou a tragédia, creditando a um fenômeno climático a queda da aeronave (“as montanhas sugam qualquer coisa que passe sobrevoando por elas”, alguém diz logo depois de oferecer argumentos científicos envolvendo correntes de ar).


Beneficiando-se de ótimos efeitos visuais, o catalão não economiza no espetáculo, mostrando não apenas a parte externa da catástrofe, como também a interna, incluindo planos-detalhe que amplificam as consequências desastrosas do impacto. São imagens rápidas, mas fortes mostrando de forma realista o que aconteceu com os passageiros durante o processo (prepare-se para fraturas expostas e corpos voando). O design de som também faz um belíssimo trabalho ao retratar, principalmente, os segundos que precederam o fatídico evento. E sem surpresa alguma, o compositor Michael Giacchino (Batman), brilha com acordes que são eficientes justamente por não serem utilizados para guiar as emoções do público.


Depois disso, porém, o filme abraça o mesmo modelo narrativo utilizado por tantas obras, com os sobreviventes lutando por suas vidas no clássico embate Homem X Natureza. O diferencial talvez seja o tom desesperançoso que toma conta do segundo ato, refletido pela perda gradual de cores na fotografia até culminar em cenas praticamente cinzas. Há também bons minutos dedicados às atitudes drásticas tomadas pelas vítimas, que apesar de fazerem literalmente qualquer coisa para sobreviverem, não deixam de debater as consequências morais de seus atos.


A longa duração, em contrapartida, é sentida, especialmente graças à dinâmica repetitiva do segundo ato envolvendo viagens esporádicas de um grupo em busca de ajuda. Verdade seja dita, há uma tentativa de driblar a mesmice, com o protagonista sofrendo um ferimento que o obriga a permanecer junto com os outros (nós espectadores estamos acompanhando-o, afinal), jogando luz sobre a reação plural, ao invés da ação de um trio de pessoas. Por outro lado, é difícil justificar a demora dos rapazes em fazer o básico. Repare como absolutamente ninguém pensa em fazer uma fogueira mesmo possuindo um isqueiro, o que impediria uma dezena de mortes. Noutro momento, os personagens são vistos comendo cigarros, apenas para, mais adiante, serem vistos fumando (se mataram a fome, como pode ter sobrado?)


Triste, denso, mas recompensador como experiência, A Sociedade da Neve relata com intensidade uma tragédia que até hoje é lembrada pelos latino-americanos, mas que deverá lutar tanto quanto seus protagonistas para conquistar a tão sonhada indicação ao Oscar.


NOTA 7

bottom of page
google.com, pub-9093057257140216, DIRECT, f08c47fec0942fa0