Festival do Rio 2024 | Dia 6
As Aventuras de uma Francesa (Yeohaengjaui Pilyo, 2024)
O prolífico cineasta sul-coreano Hong Sang-soo (assinou oito longas em menos de dez anos) construiu uma base leal de fãs ao longo dos anos, especialmente programadores de festivais, como o do Rio. Em mais de uma ocasião, por exemplo, os espectadores cariocas chegaram a ter dois filmes de Sang-soo disponíveis para apreciação. Esse ano, contudo, um longa foi para a Mostra de São Paulo e o outro, este As Aventuras de uma Francesa, chega para seis sessões, um recorde para a atual edição.
Contando com todos os elementos que compõem o estilo do multipremiado queridinho do circuito mundial de festivais, como longos planos estáticos e diálogos concebidos para soarem improvisados, Yeohaengjaui Pilyo (no original) acompanha Iris (Isabelle Huppert, em sua terceira parceria com Sang-soo) uma mulher francesa que mora na Coreia do Sul e se mantém fazendo bico como professora de francês. Não que ela tenha formação na área educacional ou sequer uma didática comprovadamente eficaz, algo que ela não tem vergonha alguma de admitir, chegando a confessar estar fazendo isso apenas pelo dinheiro.
Consistindo na repetição de frases extremamente pessoais (Iris alega que isso facilita em fixar o aprendizado), seu método pode não ser comprovadamente eficaz, mas ao menos serve para revelar características de seus alunos. Iris, em contrapartida, é um profundo mistério, pois as únicas informações que temos ao seu respeito é o fato de dividir um apartamento com um rapaz bem mais jovem e adorar uma bebida tipicamente sul-coreana.
Notabilizando-se como um terror para pessoas hiperativas, a abordagem morosa e excessivamente descompromissada característica de Hong Sang-soo também tem tudo para enervar aqueles que não tiverem paciência para decifrar as intenções do realizador. Aqui, aliás, ele soa ainda mais esfíngico do que de hábito, apresentando situações cujos significados vão variar de espectador para espectador.
O encantamento de Sang-soo pelo prosaico, no entanto, permite a formação de um mosaico multifacetado de um povo contido, mas apreciador da beleza da Arte, tanto que praticamente todos os alunos de Iris citam poemas (alguns lidos diretamente a partir de monumentos públicos) e interrompem as lições para tocarem algum tipo de instrumento musical. Além disso, o filme também dá destaque às paisagens urbanas do país asiático, com Iris batendo perna por lugares bucólicos, cosmopolitas e até a junção destas últimas características.
O que sobra de concreto é a performance de Isabelle Huppert, que parece divertir-se a valer ao explorar os mistérios de sua personagem. Se isso será suficiente para apreciar As Aventuras de uma Francesa, só você poderá confirmar.
NOTA 6
The End (Idem, Irlanda/Reino Unido/Dinamarca/Suécia)
Diretor de documentários como O Ato de Matar (2014) e O Peso do Silêncio (2016), pelos quais foi indicado ao Oscar, Joshua Oppenheimer teve tempo de sobra para pensar na hora de escolher o filme que marcaria seu debute no Cinema Ficcional. Demonstrando coragem, ele toma para si o desafio de fazer uma homenagem aos musicais da Era de Ouro hollywoodiana, mas num contexto de distopia pós-apocalíptica. Com a ideia de reunir personagens heterogêneos vivendo como um grande família num bunker suntuoso a um quilômetro do que restou da superfície, Oppenheimer conseguiu atrair a estrela em ascensão George MacKay (1917) e os excepcionais Michael Shannon (o Zod de O Homem de Aço) e Tilda Swinton (O Quarto ao Lado). Conhecido por aparecer em bons projetos independentes, como o recente Femme, MacKay é outro a sair de sua zona de conforto. Já Swinton e Shannon, embora igualmente estranhos a musicais, estão mais que acostumados a embarcarem em viagens arriscadas.
The End abre a projeção com uma citação ao poeta norte-americano T.S. Eliot (“As casas ficaram submersas e os dançarinos foram para as colinas”), dando a primeira de várias pistas sobre o que pode ter acontecido com o planeta e Oppenheimer é inteligente ao deixar de lado esclarecimentos mais contundentes. O que interessa não é o planeta e sim as pessoas. Não procure saber sobre a destruição da natureza, mas sobre o que os últimos sobreviventes tiveram de fazer para escaparem da morte. Dessa forma, a proposta é mostrar um grupo de estranhos que abraça a fantasia como um meio de sobrevivência, acomodando organicamente as sequências musicais. Pouco importa a vida pós-colapso civilizatório. O passado pode ser doloroso demais para ser lembrado.
A personagem de Swinton é a primeira a despertar a desconfiança do público e não demora a fazer do esquecimento um estandarte a ser promovido a qualquer custo. Numa sequência reveladora, ela descobre fotos suas espalhadas por um cômodo e faz questão de retirá-las. Signo narrativo ligado diretamente a lembranças (felizes ou não), as fotografias são registros de uma época alegre que já não existe mais. O exercício da memória é contraproducente quando é o instinto de sobrevivência que prevalece. Então por quê relembrá-la? Não basta o sofrimento de carregar o peso do último suspiro da Sociedade? Ou pior, o fardo representado pelo que foi feito para ter o privilégio de passar os momentos derradeiros de vida cercada por livros, música, comida boa em abundância e calor humano.
Esse mistério torna a alegria daquele ambiente tão forçada quanto a convivência, gerando tração através do contraste. Dentro dessa perspectiva, The End opera como uma versão sombria de La La Land – Cantando Estações (2016). Enquanto os personagens da obra-prima de Damien Chazelle cantavam sobre sonhos como realizações a serem alcançadas, a busca pela felicidade suprema, o roteiro de Joshua Oppenheimer aproveita apenas o poder da ilusão, o sonho como fantasia. Ao invés de cantarem sobre aspirações profissionais e pessoais, mentalizando um futuro próspero, os personagens de The End cantam como um apelo ao que restou de humanidade. Como William James disse, “o passarinho não canta por ser feliz, ele é feliz porque canta".
Por isso, as sequências musicais não são particularmente elaboradas. Diferentemente do que acontece no fraco Coringa – Delírio a Dois, no qual o diretor Todd Phillips não demonstrou o menor interesse em aprender a construir um musical minimamente competente, a ausência de coreografia em muitos momentos reflete a própria narrativa em si, pois apesar de estarem cantando, os homens e as mulheres têm ciência da situação na qual se encontram e o cenário não os deixa esquecerem. E as canções originais compostas por Joshua Oppenheimer e harmonizadas por Marius De Vries e Josh Schmidt se encaixam perfeitamente nessa abordagem, por serem uma fórmula legítima de comunicação entre os personagens, ao mesmo tempo que mantém a trama avançando.
E como diretor, Oppenheimer também não faz feio, criando planos significativos ao lado do diretor de fotografia Mikhail Krichman, como aquele em que o patriarca de Michael Shannon está sentado numa cadeira e uma imensa pintura (envolvendo um naufrágio) atrás dele é estrategicamente focada na altura de seus ombros, como se ele carregasse o peso de uma tragédia sobre os ombros.
Inventivo e audacioso por encaixar uma ode aos grandes musicais (símbolos de esperança e escapismo) num ambiente de profunda desesperança e melancolia, The End é uma experiência agridoce que obriga seus personagens a confrontarem seus maiores demônios. Esses confrontos lembram os sobreviventes de quem realmente são, comprovando que não é possível fugir do que realmente somos e a chave para um futuro melhor (leia-se conviver com quem somos de fato) não é tentar apagar nossos erros, mas aprender com eles. Nos perdoarmos.
NOTA 8
Canina (Nightbitch, Estados Unidos)
“A primeira coisa que um filho faz ao nascer é praticar um ato de extrema violência contra a mãe, rasgando-a para vir ao mundo”
Quando uma mãe diz isso em certo momento da projeção de Canina, é porque algo muito sombrio está para acontecer (ou já está acontecendo) e apesar de não abrir a projeção, chega a tempo de resumir com perfeição o sentimento da personagem vivida por Amy Adams, identificada apenas como “Mãe”. Fechando com chave de ouro o sexto dia do Festival do Rio 2024, o novo filme de Marielle Heller (do ótimo Um Lindo Dia na Vinzinhança) é uma metáfora sobre a maternidade, extrapolando as consequências do cansaço físico e mental vivido por uma mulher de meia-idade.
Dona de um estilo único que costuma aliar com precisão cirúrgica comédia e drama (realidade e fantasia), Marielle Heller há tempos deixou de ser uma promessa para se acomodar entre os grandes realizadores de sua geração. E o fato de ainda não ter sido indicada ao Oscar diz muito mais sobre a Academia do que sobre ela. Em Nightbitch, no original, ela repete a estratégia ao construir uma alegoria surrealista sobre os sacrifícios feitos pelas mulheres ao se tornarem mães.
Adams, um caso ainda mais grave de falta de reconhecimento pelos membros da Academia, encarna o papel mais inusitado de sua carreira com uma ferocidade digna de seu talento. Surgindo acima do peso e com pouca maquiagem, ela é praticamente a personificação do esgotamento. Presa numa situação que ela mesma criou (palavras dela), a protagonista se sente soterrada por uma rotina que demanda mais energia do que ela é capaz de oferecer.
A grande sacada do roteiro de Heller, adaptado do romance de Rachel Yoder, porém, não é colocar a mãe para odiar o filho, arrependendo-se da maternidade, muito pelo contrário, pois jamais a vemos demonstrar um sentimento diferente de amor. Ela pode cansar da trabalheira que dá criar uma criança, mas não se cansa de exalar alegria ao estar com o menino e, para não restar dúvida, diz categoricamente (mais de uma vez) que nunca se arrependeu de ter se tornado mãe. Quando vemos seu marido em cena, vivido por um Scoot McNairy (Um Lugar Silencioso: Parte II) que encarna o pai médio, percebemos que ele poderia facilmente resolver seus problemas. E tudo o que ela quer é alguém para dividir as responsabilidades, algo que a possibilitaria ter uma vida fora do papel de mãe exercido 24 horas por dia.
O componente surreal entra na história como uma metáfora para o colapso nervoso da mulher, cada vez mais convencida de estar se transformando num cachorro. E por mais estranho que isso possa parecer, lembre-se que os caninos também possuem instinto materno! É uma forma encontrada de extravasar suas frustrações, abraçar a liberdade que há muito tempo não tem. “Me tornei a dona de casa que nunca quis ser”, diz a artista em certo momento, lembrando que jamais voltou a pintar desde que o filho nasceu.
Marielle Heller tenta explorar ao máximo esse curioso recurso, mas a cada vez que avança nos delírios da Mãe, deixa algumas perguntas pelo caminho. Afinal, ela está (ou acredita estar) se transformando paulatinamente num cachorro ou só se torna um durante a noite (dando sentido ao título)? E um surto durante um jantar com amigos num restaurante local pode até servir para sedimentar as impressões sobre a condição da protagonista, mas a ausência de consequências gera confusão. E depois de fundamentar tão bem seu ensaio sobre a maternidade e o papel do homem, é uma pena que Heller revele-se tão insegura ao ponto de mastigar a moral da história para o espectador nos minutos finais de projeção (com direito a um personagem aparecendo apenas para dizer que alguém "conseguiu", indo embora logo em seguida).
Pecados menores cometidos por uma cineasta que não apenas sabe o que quer, mas que tem habilidades para executar sua visão. Perceba, por exemplo, como a diretora ilustra os momentos de devaneio da protagonista investindo no som de pássaros. Na mesma sequência supracitada ambientada no restaurante, a mulher se perde nos próprios pensamentos, divagando enquanto o design de som é acionado para mostrar que trata-se de um breve mergulho no inconsciente dela. E ajuda muito também a presença de uma atriz versátil como Amy Adams, capaz de falar as piores atrocidades sem soar como um monstro, dando vazão ao humor ácido do texto de Heller.
Embora tropece esporadicamente na utilização de elementos surreais (especificamente suas implicações), Canina é uma ode constrangedoramente certeira à Maternidade e como o patriarcado ainda sufoca as mulheres (“pareço uma dona de casa dos anos 50”, a protagonista chega a dizer), oferecendo uma experiência daquelas onde o fluxo de gargalhadas é ininterrupto, estabelecendo-se como uma das produções mais divertidas e inteligentes de 2024.
NOTA 7,5
Comments