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'Karatê Kid: Lendas' moderniza e honra o legado da franquia

  • Foto do escritor: Guilherme Cândido
    Guilherme Cândido
  • 9 de mai.
  • 10 min de leitura


Se a produção anterior buscava reiniciar a série aos olhos de um novo público, Lendas faz o caminho oposto, traçando paralelos com os filmes originais já nos primeiros minutos de projeção, quando a tela escurecida e as letras vermelhas antecipam a primeira injeção de nostalgia. Trata-se de uma sequência de Karatê Kid: A Hora da Verdade Continua (1986), na qual o Sr. Miyagi conta a história de seu mestre a Daniel-san, rememorando um capítulo em que o sensei, um pescador ébrio, vai parar na China por acidente e acaba em contato com a cultura do Kung Fu, cujos ensinamentos influenciaram em sua metodologia no Karatê. Rever o saudoso Noriyuki ‘Pat’ Morita ao lado de um jovem LaRusso inquestionavelmente traz sentimentos calorosos a quem tem apreço pela franquia, mas a utilização desse momento em específico também se justifica narrativamente, uma vez que elucida, de forma objetiva e surpreendentemente plausível, a entrada do Sr. Han no cânone, forjando laço com o veterano japonês.

No artigo que escrevi sobre o Karatê Kid de 2010, relembrei declarações de Ralph Macchio a respeito do personagem de Jackie Chan não fazer parte da cronologia da cinessérie, pois não possuía ligação com Miyagi (“são canônicos apenas os personagens que o conheceram”). Assim como outras falas que posteriormente se provaram contraditórias, o roteiro escrito por Rob Lieber (Goosebumps 2, Pedro Coelho) sacramenta a absorção do reboot por este novo capítulo, fazendo da aventura estrelada por Jaden Smith, peça oficial da engrenagem construída a partir de 1984. Uma ideia bem sacada que invalida quaisquer argumentos dos fãs menos receptivos, ao mesmo tempo que promove uma adição orgânica, sem forçar a barra ao provar que, sim, Han e Miyagi não apenas se conheceram, como foram amigos.

Tirando esse iminente obstáculo da frente, Karatê Kid: Lendas (o primeiro da franquia sem a produção do finado Jerry Weintraub) passa a se concentrar na história de um novo jovem aprendiz. Felizmente, sem histórias de origem dessa vez, visto que o Xiao Li de Ben Wang já é aluno do Sr. Han, agora dono de sua própria academia de Kung Fu. E dos bons, mostrando ser tão aplicado e habilidoso quanto Daniel LaRusso. A diferença é que o novo filme inverte a dinâmica estabelecida no longa-metragem anterior: ao invés de começar nos Estados Unidos e levar o protagonista à China, é o chinês quem acaba se mudando para Nova York, onde a mãe consegue emprego num hospital. Ela, aliás, é sobrinha de Han, com quem possui uma relação estremecida por uma tragédia recente. É mais um artifício aplicado pelo roteirista para amarrar as pontas da narrativa, ilustrando a proximidade dos três personagens, que, lembremos, eventualmente estarão juntos em solo estadunidense.

Eis aí outra diferença entre este sexto capítulo e os três primeiros, em que o criador Robert Mark Kamen mantinha a mãe de LaRusso à distância, impedindo-a de participar ativamente da vida do filho e, consequentemente, da história. A chinesa Ming-na Wen encarna a mãe da vez: imortalizada na cultura popular como a voz da heroína Mulan no longa de 1998 e intérprete da lutadora Chun-Li na adaptação do videogame Street Fighter estrelada por Van Damme em 1994, ainda se destacou na TV, primeiro como personagem recorrente em E.R. – Plantão Médico (1994-2009) e mais recentemente na série da Marvel Os Agentes da S.H.I.E.L.D. (2013-2020). Ela constrói uma personagem que exibe força, mas sem deixar o afeto de lado, além de investir num sarcasmo que tempera divertidamente a dinâmica com o filho. Wen, no entanto, se destaca, até mesmo em comparação com a bem-sucedida Taraji P. Hanson do filme de 2010, pois abraça a oportunidade de estabelecer a mãe de Li como uma mulher inteligente, estando sempre dois passos a frente até mesmo de Han em suas tentativas de manter os treinamentos do rapaz em segredo.

Se Ralph Macchio, com 22 primaveras vividas, chocou o mundo ao interpretar convincentemente um adolescente, Ben Wang consegue uma verdadeira proeza ao encarnar o estudante Li Fong sendo dois anos mais velho e apesar de não transmitir a mesma gentileza contagiante, conquista o espectador com simpatia e vigor físico. Ajuda o fato de Li não ser um reclamão, pelo contrário, surgindo compreensivo e mostrando maturidade diante de conflitos que fatalmente seriam problemáticos nas obras anteriores. Outra ruptura em relação aos protagonistas anteriores, diz respeito a suas habilidades: como já é um iniciado no Kung Fu, ele é capaz de vencer algumas lutas, ao invés de apanhar a todo momento como seus antecessores. E mesmo quando sucumbe, logo se levanta, revelando resiliência e fibra, em contraste com o semblante leve.

O sorriso juvenil chama atenção, mas o maior trunfo de Wang, visto recentemente no remake musical de Meninas Malvadas (2024), é a dedicação na hora de colocar em prática as coreografias de Xiangyang Xu, profissional responsável pelas boas lutas de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (2021). Li, além de respeitoso e agradável, é um acrobata nato, fazendo jus ao apelido “Peter Parker Chinês”, recebido durante a trama.

Se a franquia nunca foi lembrada pela excelência das sequências de ação, o cineasta Jonathan Entwistle faz questão de tentar mudar esse panorama, dando liberdade para Xu conceber lutas que eventualmente até extrapolam os métodos tradicionais das artes marciais, incorporando movimentos típicos do parkour e golpes cuja potência lembram Matrix em alguns instantes (especialmente numa luta envolvendo o vilão). É verdade que Karatê Kid: Lendas eleva a qualidade da ação oferecida pela cinessérie, adequando-se ao nicho dos blockbusters contemporâneos, mas se apresenta irregular nas mãos iniciantes de Entwistle.

Comandando seu primeiro longa-metragem, o diretor de séries como I Am Not Okay with This (2020) e The End of the F***ing World (2017-2019), ambas da mesma Netflix que acolheu Cobra Kai (2018-2025), extensão televisiva de Karatê Kid, o britânico mostra insegurança na filmagem da primeira luta. Noturna, a sequência é emblemática por promover outra inversão da dinâmica dos capítulos anteriores, trazendo o garoto salvando um lutador mais velho, este interpretado por Joshua Jackson, mas que é sabotada pela condução errática de Entwistle, exagerando nos cortes e adotando a famigerada câmera tremida. Confusas, essas cenas apenas comprovam a dificuldade do diretor ao trabalhar em ambientes reduzidos, já que posteriormente ele consegue se redimir.

Enquanto Karatê Kid nunca se comprometeu em ofertar sequências de ação particularmente complexas, apoiando-se na filosofia do “simples bem feito”, seu mais novo capítulo provoca o espectador buscando coreografias que vão além do básico. A despeito dos movimentos engenhosos (com destaque para a supracitada passagem do “Peter Parker Chinês”), Lendas imprime um ritmo ágil não só na narrativa, adequada aos padrões da geração TikTok, como também nos confrontos corporais enfrentados por Li. O torneio, palco do clímax da história, representa o que de melhor Jonathan Entwistle tem a oferecer (com direito a tomadas aéreas e planos abertos) e até a câmera lenta, um recurso batido, é usado de maneira a salientar mais do que a plasticidade dos golpes, revelando expressões e estreitando ainda mais a proximidade com a linguagem dos videogames.

A cena em que Li e Mia (Sadie Stanley) pegam o metrô, por exemplo, já se encarrega de escancarar essa pretensão ao trazer o pôster do game de luta Tekken em segundo plano, numa das paredes. A “gamificação”, por outro lado, se atém ao âmbito visual, dispensando a estrutura narrativa defendida por Paul W. S. Anderson, seu maior entusiasta na atualidade e que esse ano lançou o medíocre Nas Terras Perdidas, outro exemplo dessa simbiose entre as artes. Por aqui, grafismos rasgam a tela e vão desde letreiros até legendas, antes de brilharem nas lutas finais. Vale dizer, equivoca-se quem pensa se tratar de uma ferramenta utilizada de forma abrupta, pois a direção nos acostuma a esse tipo de estilização ainda nos primeiros segundos de projeção, dando vida às traduções dos diálogos em mandarim. O ápice do visual de videogame, no entanto, acontece mesmo no terceiro ato, culminando em lutas entrecortadas pelo tradicional “FIGHT!”, que de quebra pode igualmente ser interpretado como mais uma legenda, traduzindo o comando do árbitro.

Falando em legenda, como é bom ver alguém seguindo os passos de Quentin Tarantino ao demonstrar preocupação com a autenticidade dos diálogos. Sim, é triste ainda ficar surpreso ao ver uma obra hollywoodiana trazendo chineses conversando em mandarim na China (!), dispensando o anedótico sotaque carregado empregado para agradar a parcela do público norte-americano permanentemente avessa a legendagem. Lendas ainda tira onda, colocando seu protagonista para questionar a própria mãe quando esta resolve falar em inglês (“novo país, novo idioma”, ela rebate, promovendo a troca da linguagem com sofisticação e naturalidade). Sem falar no espanto de Mia perante o inglês de Li.

Sadie Stanley tem a sorte de interpretar o par romântico mais interessante da franquia (o que não quer dizer muito quando lembramos de suas desafortunadas antecessoras).

Outra a ter vindo da TV (Disque Amiga Para Matar, Cruel Summer e Os Goldbergs são apenas alguns dos seriados dos quais participou), ela não tem a menor dificuldade de nos mostrar o porquê Mia conseguiu fisgar Li tão rapidamente. A menina é importante, pois faz parte do núcleo que permite a entrada da Luta na história, ao mesmo tempo em que oportuniza o retorno do Sr. Han aos holofotes, dividindo espaço com o pai, o cordial Victor. O ex-boxeador, por sua vez, é interpretado por Joshua Jackson com tanto calor humano que nos pegamos, mais de uma vez, desejando vê-lo mais vezes nas telonas. Dos filhotes da TV, o canadense é quem possui a carreira mais sólida, tendo no currículo sucessos como Dawson’s Creek (1998-2013), Fringe (2008-2013), The Affair (2014-2019), entre outros.

Tecnicamente, como era de se esperar, Karatê Kid: Lendas faz o dever de casa. A figurinista britânica Mirren Gordon-Crozier (de Um Lugar Bem Longe Daqui) é cuidadosa ao vestir Jackie Chan com o mesmo tom de azul que marcou sua caracterização na obra de 2010, mas não apela para a nostalgia gratuita, evitando espelhar os quimonos da leva de 1980. Mais discretamente, o diretor de fotografia Justin Brown, parceiro de Jonathan Entwistle na Netflix, opta por jogar seguro, deixando de lado a solenidade do contraluz tão característico da marca e imprimindo um tom ensolarado mais convidativo às estilizações promovidas. Já a montagem prima pela fluidez, atingindo o pico durante o terceiro ato, quando engata um ritmo frenético. O destaque do trabalho de Dana E. Glauberman e Colby Parker Jr. (dupla de Homem-Formiga e Ghostbusters: Mais Além) fica por conta das lutas em paralelo e dos criativos raccords.

O frescor emanado por essa abordagem moderna e descolada é reverberado pela trilha sonora, outra marca registrada de Karatê Kid. Ao invés de trazer canções contemporâneas inclinadas para o rock, alternando com as belíssimas melodias incidentais compostas por Bill Conti, desta vez há uma forte influência do hip hop no trabalho do músico Dominic Lewis. Tendo logrado êxito no divertidíssimo O Dublê, onde combinou hits clássicos e acordes tradicionais, Lewis é inteligente o bastante para sequer tentar igualar o tema à base de flautas criado por Conti, mas flerta com a inconsistência ao promover a união entre nomes díspares como Backstreet Boys e Rod Stewart, por exemplo.

É impossível falar de união sem comentar o retorno de Ralph Macchio, agora nessa interseção catalisada pelo projeto, fazendo jus ao slogan “dois galhos, mesma árvore”. A entrada triunfal de Daniel LaRusso, ao som do tema clássico e com um movimento de câmera que privilegia o impacto de sua revelação, dificilmente deixará os fãs indiferentes, por mais que o roteiro trave uma batalha hercúlea para torna-lo relevante dentro da história. Além da nostalgia, devemos acreditar que o ex-aprendiz (agora sensei) é o único capaz de ensinar o “Karatê Miyagi” tão essencial para que Li possa derrotar seu talentoso e implacável nêmesis. Caso contrário, Han sozinho poderia perfeitamente guiar o jovem protagonista rumo à vitória, não é mesmo?

Aos 63 anos (doze anos mais velho do que Pat Morita no primeiro filme), Macchio se esforça para manter a expressão pura e o vocabulário juvenil, elevando a história com a vitalidade e empolgação de Daniel, ainda intactas. Finalmente fazendo jus ao “san” de Daniel-san (expliquei quando escrevi sobre o original), a chegada de Daniel drena o que restava da dramaticidade carregada por Han, tão latente em 2010, dando lugar a uma relação conduzida pelo roteiro por vias cômicas.

Aliás, Lendas é excepcionalmente eficaz ao evocar a mesma atmosfera das primeiras aventuras de Daniel e Miyagi, resgatando o “espírito oitentista” da obra que fazia jus às numerosas reprises na Sessão da Tarde. Jackie Chan, por si só, já garante a leveza da história, eliminando qualquer possibilidade de a obra adentar caminhos violentos ou amorosos. Em contrapartida, essa decisão impede a história de se equiparar à densidade de Karatê Kid, por exemplo. Há uma subtrama ligando Li e a mãe a uma perda e o primeiro ato concentra o maior potencial dramático do script, mas o compromisso do projeto com a leveza torna esses arcos superficiais demais a ponto de provocarem alguma emoção, o que não deixa de ser frustrante.

Outra frustração fica por conta da falta de desenvolvimento do vilão encarnado por Aramis Knight (Ender’s Game: O Jogo do Exterminador), definido apenas pelo comportamento hostil a Li (até Johnny Lawrence teve mais espaço). E se o treinador adversário costumava receber alguma atenção do roteiro, por aqui nem sinal de O’Shea, sensei durante o dia e agiota pela noite. O sujeito nem se dá ao trabalho de gritar incentivos para o aluno, mas ao menos cumpre o papel de reeditar momentos clássicos, como ao ordenar um golpe baixo ou através do lema, que ainda permite um original “não lutamos por pontos, lutamos para matar!”. O drama, bem administrado nos dois primeiro exemplares, aqui é tão leve que chega a ser superficial, principalmente nos conflitos envolvendo o trauma do herói principal. Isso para não mencionar o excesso de montagens de treinamentos (Li participa de duas longas sequências, nem sempre sendo o foco), afinal, é muita preparação para a breve duração do longa (94 minutos, o mais curto da série).

Culminando num embate final que ganha intensidade graças à decisão de ampliar o número de pontos necessários para vencer (pode parecer exagerado, mas possibilita empolgantes sequências de golpes), ainda que seja prejudicado por comentários desnecessários de narradores ocultos, um mecanismo tolo jamais utilizado na franquia, Karatê Kid: Lendas, ao seu próprio e imperfeito modo, cumpre com louvor o papel de se enturmar com as novas gerações, mas sem perder de vista os velhos fãs, verdadeiros responsáveis por garantir a longevidade da franquia). Os acenos nostálgicos vão desde a famosa residência de Miyagi (e sua coleção de carros) até o recente “bota casaco, tira casaco”, viral entre os jovens que fizeram do filme de 2010 sua porta de entrada para a franquia.


Que, no final das contas, continua a tradição de oferecer um passatempo leve, bem-humorado e de fácil consumo. Karatê Kid vive.



NOTA 7


Críticas dos filmes anteriores:

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