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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Mesmo bem produzido, "Pacificado" lança olhar raso sobre mazelas sociais

Atualizado: 31 de ago. de 2022


Tati (Cássia Nascimento) é uma adolescente de 13 anos que observa o Maracanã de longe enquanto o som dos fogos de artifício se mistura com o dos aplausos e gritos efusivos de uma plateia completamente distante do universo da garota. Após 14 anos preso, Jaca (Bukassa Kabengele) finalmente está saindo da cadeia, retornando para sua comunidade apenas para descobrir que agora ela está sob o comando do impiedoso Nelson (José Loreto). Unindo os três está o Morro dos Prazeres, que serve de cenário a Pacificado, mas que também desempenha seu próprio papel dentro da trama, como se fosse um personagem por si só.


Afinal, o morro foi só um dos vários que integraram o projeto de pacificação no Rio de Janeiro, quando o governo estadual resolveu implementar a política das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) para frear a violência urbana e trazer paz à cidade. A ideia era colocar a polícia para invadir e retomar o controle das comunidades, num artifício para blindar as Olimpíadas e oferecer sensação de segurança aos turistas na época. Tudo isso se revelou uma manobra para inglês ver, um marketing vendido através de coberturas televisivas sensacionalistas que correram o mundo para mostrar que as Olimpíadas do Rio seriam seguras.


Em contrapartida, Pacificado mostra o que todos já sabíamos: que a polícia acabou fazendo um acordo tácito com os bandidos para uma espécie de cessar-fogo durante o mês olímpico. Os residentes do Morro dos Prazeres, Tati inclusa, sabiam que a tal "pacificação" tinha prazo de validade. Assim como vimos em várias outras obras semelhantes, porém, o problema é muito mais profundo e a solução passa longe de ser simples.


Indo pelo mesmo caminho, a produção também vende uma ideia de profundidade que se prova inexistente, um retrato da realidade feito por alguém de fora. Sim, Pacificado articula uma narrativa tentando ilustrar o cotidiano dos residentes da comunidade, abordando as mazelas de uma parcela da população que vive à mercê do cinismo político, mas que apenas arranha a superfície. A montanha que a produção apresenta é, de fato, íngreme, mas não passa da ponta de um gigantesco iceberg.


Como alguém que morou por oito anos no Morro dos Prazeres, o cineasta estadunidense Paxton Winters, dono de uma filmografia parca e pouco expressiva, não escapa do tradicional olhar que é lançado a esse tipo de situação social: o de fora. Ele tem a pretensão de entrar no debate, mas seu discurso não vai longe, indicando caminhos já traçados por obras mais contundentes. Seu roteiro assimila quase todos os cacoetes do famigerado favela movie, embora elaborados com desenvoltura e sem espaço para firulas.


A ingenuidade de Winters contamina o texto, incluindo diálogos concebidos como verdades impactantes, mas que não saem do território coberto pelos noticiários. Quando alguém pergunta a Jaca o porquê de ele não comandar a comunidade mesmo estando preso “como todos os outros fazem” ou quando outro personagem reclama do fato de “sempre acabar alguma coisa” da despensa, não recebemos a mensagem como uma revelação, mas como a reiteração daquilo que faz parte da nossa cultura.


Essa banalidade fica ainda mais acentuada sempre que o diretor/roteirista resolve colocar uma lupa em seus personagens, como se Winters se sentisse mais confortável em lidar com questões mais intimistas do que com o contexto macro que orbita os orbita. Ele é extremamente feliz, por exemplo, ao expor as consequências da criminalidade por um pelo prisma psicológico. Ver alguém deixando o crime e tendo de lidar com a depressão consequente da mudança brusca de vida é algo com que Winters conduz com sensibilidade, propondo uma abordagem que nem de perto resvala no lugar-comum. Indo além, Winters expõe as contradições de um lugar onde é mais fácil ter acesso a drogas entorpecentes do que a antidepressivos e a sequência em que um médico se recusa a prescrevê-los, mas sugere ser usuário de maconha, é certeira ao escancarar a hipocrisia do sistema.


O diretor também é hábil ao extrair atuações grandiloquentes de seu elenco. Ninguém fica por baixo, mas é Bukassa Kabengele (Carcereiros) quem ostenta a performance mais notável. Nascido na Bélgica, mas residente no Congo até os 10 anos, quando se mudou para o Brasil, o ator é capaz de transmitir uma infinidade de emoções com um simples olhar ou uma singela mudança de expressão. Exalando imponência sem depender de histrionismos, ele transforma Jaca na figura mais fascinante e carismática de Pacificado: relutante em reassumir o comando da comunidade, Jaca é um homem cansado, não só da vida no crime, mas dos deveres embutidos no poder. “Eu só quero sobreviver”, diz ele ao explicar a decisão de abrir uma pizzaria ao invés de reaver seu posto. Seu coração grande, por outro lado, não o impede de ajudar aos vizinhos, mesmo contrariado.


Já a novata Cássia Nascimento encarna Tati com invejável segurança, investindo na naturalidade. As surpresas que explodem em seu rosto, como um tiro que sai pela culatra, contrastam com a personalidade inocente de uma jovem cheia de planos, mas frequentemente esmurrada pelos caprichos do destino. Enquanto isso, Débora Nascimento, personifica a dependência química numa subtrama protocolar, mas com imensa entrega, beneficiada por uma maquiagem que não economiza nas olheiras e no aspecto frágil.


Com um arsenal técnico que imediatamente diferencia Pacificado dentro do subgênero no qual está inserido, Paxton Winters emprega boa parte de sua energia para fazer da produção uma experiência visualmente distinta, abusando do contraluz e dos impressionantes planos aéreos para conferir credibilidade artística à obra, sem deixar de lado a crueza, evidenciada pelas sequências filmadas com a câmera na mão. É uma pena que o esmero estético não se aplique ao som, prejudicado por uma mixagem problemática (principalmente nas sequências em bailes funk).


Produzido pelo grande Darren Aronofsky (autor de obras-primas como Cisne Negro, Réquiem Para Um Sonho e O Lutador), Pacificado empalidece como manifesto social, engolido por ambições temáticas que se revelam muito mais prósperas em contextos menores, quando mais fáceis de serem administradas. Visualmente caprichado e com belíssimas atuações, porém, não deve ter seu valor artístico desprezado.


NOTA 7

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