"A Casa Que Jack Construiu" é mea culpa terapêutico de Lars von Trier
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"A Casa Que Jack Construiu" é mea culpa terapêutico de Lars von Trier

O cineasta dinamarquês Lars von Trier é um provocador nato, responsável por obras controversas quase sempre marcadas pela violência gráfica. Entretanto, por mais polêmico que seja, é difícil questionar sua competência como realizador. A maior reação que ele obteve, porém, não foi com uma de suas criações, e, sim, com sua declaração em 2011 durante a coletiva promocional de seu Melancolia no Festival de Cannes. Ao ‘brincar’ com judeus, dizer simpatizar com Hitler e ainda se assumir nazista, o diretor conseguiu ser declarado como persona non grata pela organização, tendo sido banido.


Porém, mesmo pedindo desculpas logo em seguida ao alegar “não estar sóbrio”, ele só voltou ao Festival esse ano, 7 edições depois e com mais uma obra controversa, mas desta vez com um forte cunho autocrítico. A história gira em torno de Jack (Matt Dillon) um serial killer que, numa conversa com o misterioso Verge (Bruno Ganz), conta sobre alguns de seus assassinatos marcantes.


Investindo pesado na licença poética, o roteiro (de autoria do próprio Lars von Trier) nos conta pouco sobre Jack e tudo o que sabemos é dito por ele mesmo ou sugerido por Verge. Assim, descobrimos que ele é um engenheiro, mas nunca o vemos trabalhar como tal. Von Trier não tem muito interesse em fazer um estudo de personagem. Jack é apenas parte da equação.


Dividindo a estrutura em cinco partes (ou incidentes), a narrativa utiliza várias alegorias que aos poucos vão dizendo muito mais sobre o próprio cineasta do que sobre Jack. Sim, é possível ter diversas interpretações sobre o script, mas além do fato de Trier ser um mestre na manipulação dos signos cinematográficos, quem conhece o episódio narrado no início desse texto dificilmente vai ignorar as claras referências.


O diretor comenta vastamente sobre a utilização da violência como expressão legítima da Arte, como se justificasse sua abordagem em obras anteriores. “A Arte não deve se preocupar com o bem-estar das pessoas” diz Jack em certo momento. E na cabeça de Von Trier, essa afirmação faz total sentido, ainda mais considerando seus meios de produzir reações em seus espectadores. Há também divagações sobre os mais diversos assuntos, com direito a uma passagem que critica pesadamente o feminismo, num descarado discurso de que “o homem é sempre o culpado, mesmo quando não faz nada”, isso logo depois de mostrar Jack cortando o seio de uma de suas vítimas para transformar em carteira, num típico momento “vontrierístico


E já que mencionei essa parte, a tão discutida violência gráfica de A Casa que Jack Construiu, é, de fato, chocante. Nem crianças escapam da crueldade do serial killer que protagoniza um momento macabro que, confesso, demorará a sair da minha cabeça e que envolve Jack aplicando técnicas de taxidermia para fazer o cadáver de um menino sorrir. Mas essas passagens são uma mera cortina de fumaça, pois o roteiro é muito mais do que apenas violência.


O brilhantismo do cineasta pode ser facilmente detectado, por exemplo, na construção da trama. Note como seu humor mórbido é utilizado para estabelecer fatos simples, como a natureza de Jack e a disposição de determinadas informações, que são apresentadas através de contradições cínicas ou rimas temáticas, como ao fazer Jack repudiar a caça apenas para colocá-lo caçando três de suas vítimas.


Matt Dillon, vale ressaltar, oferece uma de suas melhores performances, surgindo apropriadamente inexpressivo e investindo numa composição focal que evita maneirismos e o convencional tom ameno. Dillon transita entre explosões de fúria e momentos sutis, sendo igualmente bem sucedido ao retratar a mania de limpeza de Jack, que rende alguns dos momentos mais divertidos da produção, graças à repetição da montagem.


Apresentando seus argumentos por meio de uma infinidade de analogias, o roteiro de Lars von Trier é quase uma carta aberta de desculpas. Uma reflexão autocrítica que justifica sua imagem pública e sua visão como artista. O mais impressionante é que Trier consegue lograr êxito nesse ponto ao mesmo tempo que concebe uma história envolvente, cheia de simbolismos e com um final matador (perdoe o trocadilho).


A Casa que Jack Construiu é uma obra de arte que provavelmente demandará uma segunda visita para que todos os elementos sejam devidamente assimilados. Não é uma jornada fácil e Lars von Trier sabe muito bem como abalar nosso bem-estar como o legítimo artista defendido por seu protagonista.


NOTA 8

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