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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 5

Atualizado: 29 de out. de 2023

Até o Cair da Noite (Bis ans Ende der Nacht, 2023) | Alemanha


Seja por sua premissa ou pelo que sugere o pôster, Bis ans Ende der Nacht (no original) é uma produção alemã que toma goles generosos da fonte do noir: apresenta um protagonista policial errante em um caso que se torna ainda mais complicado graças a uma femme fatale. Mas o novo filme de Christoph Hochhäusler tem ambições maiores do que simplesmente emular a narrativa dos filmes policiais influenciados pelo Expressionismo Alemão e que levaram multidões aos cinemas na década de 40.


Isso porque a trama busca adicionar camadas inesperadas ao relacionamento entre o detetive Robert (Timocin Ziegler) e Leni (Thea Ehre). O primeiro utiliza a segunda para se aproximar de Victor (Michael Sideris) um ex-DJ que agora administra um site voltado para o tráfico de drogas. Leni, por sua vez, está em condicional, sendo vigiada de perto por Robert. As coisas se tornam complexas quando fica claro para o espectador que os dois se envolveram romanticamente antes dela ser presa (justamente por causa de drogas). Mas não de um jeito tradicional.


Acontece que Leni já foi Leonard, homossexual que aceitou traficar drogas para financiar seu processo de transição para o sexo feminino, sendo preso antes de efetivamente concluí-lo. O que torna tudo ainda mais fascinante é que Robert se apaixonou por Leonard, não por Leni e considera uma traição o fato de o ex-amante ter se tornado uma mulher trans. Tanto que uma sequência marcante no segundo ato traz o policial tentando acariciar Leni e, sendo impedido de tocar sua genitália, explode em ressentimento e frustração. Alguns simbolismos enriquecem a narrativa, como a sequência que abre a projeção (um apartamento sendo redecorado, com móveis e pintura dando uma nova identidade a um mesmo espaço).


Diante de um conflito tão complexo, é natural que a trama investigativa fique relegada ao segundo plano, o que pode frustrar os fãs do gênero. A ação, aliás, só irrompe de fato no terceiro ato, com um breve e desajeitado tiroteio encerrando os trabalhos. Porém, o foco do roteiro escrito por Florian Plumeyer está mesmo no conturbado relacionamento entre Robert e Leni. O desejo do policial em financiar a cirurgia da amada remete a Um Dia de Cão, clássico de Sidney Lumet protagonizado por Al Pacino em 1975.


Enquanto isso, outras subtramas não atingem o mesmo grau de desenvolvimento, como o triângulo representado por Robert, Leni e Victor, cujas interações soam confusas em vários momentos (o disfarce do protagonista só dificulta as coisas nesse sentido). Não funciona a atração sugerida entre o vilão e Robert, assim como sua proximidade com Leni ocasionalmente deixa de convencer. A falta de uma exploração maior da nova identidade de Leonard (e a reverberação em seu entorno), soa frustrante, ainda que seja compreensível que os realizadores tenham optado por limitar o escopo.


Afinal, estamos diante de um neo-noir incomum, um thriller policial que incorpora questões LGBT e as explora com sucesso em sua iniciativa de trazer um relacionamento mais complexo do que o habitual Policial X Femme Fatale. Lembrando o nacional Berenice Procura em alguns aspectos (especialmente os sentimentos do protagonista), Até o Cair da Noite é uma experiência peculiar e que renova o fôlego de um subgênero quase centenário.


NOTA 7


 

Corta! (Coupez!, 2023) | França


O cineasta francês Michel Hazanavicius tem uma carreira curiosa. Prolífico, dirigiu dezenas de comédias em seu país-natal. Muitas foram sucessos estrondosos de público, ainda que algumas tenha sido difíceis demais de serem exportadas para o restante do mundo. Isso, por outro lado nunca o incomodou. Mas quando firmou uma parceria com o conterrâneo Jean Dujardin, passou a experimentar um prestígio ainda maior junto ao grande público (especialmente graças à revitalização da franquia Agente 117, paródia dos filmes de James Bond). Entretanto, num golpe do destino, Hazanavicius e Dujardin simplesmente demoliram as fronteiras que separavam o Cinema norte-americano daquele praticado na europa. Com O Artista, a dupla conquistou Cannes (até o cachorrinho Uggie acabou premiado) e surpreendeu ao chegar com fôlego à temporada de premiações nos Estados Unidos, faturando nada menos do que cinco Oscars (Filme, Diretor, Ator, Figurino e Trilha Sonora). O inédito prestígio internacional, por sua vez, não afetou os planos do, agora vencedor do Oscar, Michel Hazanavicius, que voltou a dirigir suas comédias locais. A mais recente delas é Corta!, filme que narra os bastidores da produção de um curta-metragem.


A história, mistura de Artista do Desastre com Todo Mundo Quase Morto, apresenta o astro Romain Duris como Rémy, um cineasta pouco badalado que recebe a proposta de dirigir um filme sobre zumbis que será gravado em plano-sequência e exibido em tempo real, como uma peça de teatro transmitida ao vivo. Num primeiro momento ele faz pouco caso, debochando da produtora japonesa que se mostra inflexível em tornar o roteiro menos “nipônico” já que a ideia é gravar com uma equipe totalmente francesa. Após pensar muito, Rémy percebe que essa pode ser a oportunidade de convencer a filha de sua competência, já que a mera presença de um jovem astro em ascensão atraiu sua atenção. Partindo de um prólogo absolutamente hilariante, assistimos em primeira mão a tal produção, um filme B com evidentes problemas técnicos e narrativos graças à sua natureza praticamente improvisada. A partir daí, o roteiro, também assinado por Hazanavicius, volta no tempo para mostrar como tudo foi feito, desde o momento em que Rémy aceitou embarcar no projeto, até os percalços enfrentados pela diminuta equipe técnica para tornar possível a gravação numa tomada só.


Daquelas comédias de provocar estridentes gargalhadas do início ao fim, Corta! ilustra com brilhantismo ímpar os bastidores que envolvem a gravação de um filme. Além das óbvias dificuldades técnicas, há sempre aqueles atores difíceis de se conviver e nesse ponto, o enredo está muito bem servido. O astro Raphaël Barrelle (Finnegan Oldfield, de Nocturama) é um poço de egocentrismo, enquanto Nadia (Berenice Bejo, esposa do diretor e indicada ao Oscar por O Artista) é uma atriz talentosa, mas que costuma entrar até demais em seus papéis, se descontrolando em cena, ao passo que Philippe (Grégory Gadebois, de A Sindicalista) não consegue trabalhar sem encher a cara antes.


Mas não só de piadas vive Coupez! (no original), pois o roteiro inclui algumas reflexões muito pertinentes sobre o pensamento habitual dos produtores, que costumam menosprezar a inteligência dos espectadores ao se meter no processo criativo. A filha de Rémy, aliás, é responsável por tecer algumas críticas ao nível das produções atuais (usando uma camisa referente a Quentin Tarantino, talvez quem mais cutuque a indústria hollywoodiana hoje em dia). O próprio Rémy se orgulha do lema “rápido, barato e mediano”, representando o diretor ideal para os executivos dos grandes estúdios.


Metalinguístico em sua essência, o longa-metragem brinca com as convenções do gênero e incorpora artifícios visuais de forma orgânica (quebras de quarta parede e o operador de câmera limpando a lente durante a filmagem). Por outro lado, o roteiro também é hábil ao articular as nuances dramáticas, alcançando emoções inesperadas para o tipo de enredo que é desenvolvido. A relação de Rémy com a filha, inclusive, é diretamente responsável pela amplificação do impacto do desfecho, que se aproxima da perfeição ao amarrar absolutamente todos os arcos e, de quebra, fazer uma elegante rima narrativa com a introdução. Afinal, se começamos o filme assistindo ao curta-metragem como um dos seus espectadores fictícios, terminamos da mesma forma, mas ao lado dos envolvidos na produção, revelando novos e infames contextos.


Pecando apenas na inclusão esporádica de piadas escatológicas, Corta! É uma grata surpresa vinda de um cineasta que sabe, como ninguém, fazer muito com pouco, concebendo uma história relativamente simples, mas capaz de provocar fortes e distintas emoções.


NOTA 8


 

A Céu Aberto (A Cielo Abierto, 2023) | México

Exibido pela primeira vez durante o Festival de Veneza e logo depois chegando ao Festival de Toronto, o drama mexicano A Céu Aberto vem ganhando notoriedade graças à presença do veterano roteirista Guillermo Arriaga no projeto. Acostumado a escrever os projetos do conterrâneo duplamente vencedor do Oscar Alejandro González Iñárritu, um deles pelo qual recebeu sua única indicação ao prêmio da Academia, Arriaga dessa vez vê seus próprios filhos assumirem a direção.


Embora seja um dos materiais menos inspirados do autor de Babel, Três Enterros e 21 Gramas (meu favorito), o projeto representa um desafio e tanto para Mariano e Santiago Arriaga, estreando como cineastas. A história se passa no México e tem início em 1993, quando um homem e seu filho de 12 anos, Salvador (Theo Goldin) resolvem pegar a estrada a fim de caçarem. Após uma parada para o almoço, os dois acabam se envolvendo num terrível acidente de trânsito, colidindo com um caminhão. Dois anos se passam e Salvador agora está morando com o irmão mais velho (Fernando, vivido por Maximo Hollander) na casa da mãe, que planeja uma viagem de duas semanas ao lado do novo marido.

Em outro filme (como o terceiro de ontem), seria a ocasião perfeita para os irmãos organizarem uma festa de arromba. Mas A Céu Aberto, ainda que um coming of age, é um drama denso de acerto de contas e, como tal, traz Fernando sedento por vingança, ansiando por uma oportunidade para dar cabo do homem responsável pela morte do seu pai. Para isso, ele descobre a identidade do caminhoneiro e traça um plano para cruzar o estado de carro até a cidadezinha onde ele vive. Salvador, ainda que mais reservado, não recusa a chance de ficar cara a cara com o sujeito que lhe tirou o que mais amava. Os irmãos, todavia, acabam chantageados por Paula (Federica García), meia-irmã que consegue arrumar um jeito de acompanhá-los, mesmo sem saber o real motivo da viagem.


Montado o cenário, a produção rapidamente se transforma num road movie, com o trio de adolescentes passando por experiências que mudarão suas vidas para sempre. Ou nem tanto, já que a ausência de acontecimentos marcantes acaba por tornar o segundo ato pouco mais do que uma sucessão de belas imagens (cortesia do diretor de fotografia argentino Julián Apezteguia) acompanhadas pela trilha sonora melancólica e ocasionalmente tensa do italiano Ludovico Einaudi. É somente perto do clímax que a história ganha uma chacoalhada, quando um novo acidente de trânsito leva o trio a perder parte considerável de seu já limitado orçamento.


Para aqueles sensíveis a sequências com animais sofrendo, cabe um alerta, pois Fernando se distrai na direção e acaba atropelando três cabras e um cachorro enquanto atravessavam a estrada com um fazendeiro (com consequências catastróficas e captadas em detalhes). Uma passagem concebida para traçar um paralelo com a tragédia que definiu as vidas de Salvador e Fernando, mas também uma forma (desnecessária, diga-se de passagem) de salientar a brutalidade do mundo em que vivem. Chocante por se estender mais do que deveria, são momentos que não chegam a surpreender, já que desde o início fica claro que estamos acompanhando personagens que não respeitam os animais (Paula chega a atirar gratuitamente num coiote).


E se o segundo terço foi salvo pela atmosfera taciturna e as belas paisagens mexicanas, o terceiro não tem a mesma sorte, soando arrastado ao se encaminhar para um limbo recheado de closes e planos-detalhe que negam ao espectador imagens dos arredores. O tal acerto de contas, aliás, é definido do jeito mais previsível possível e enerva justamente por postergar o que todos já imaginamos. Um desfecho justo, é verdade, levando-se em consideração os personagens envolvidos e seus respectivos arcos dramáticos, mas que não chega a causar impacto, resumindo A Céu Aberto a uma estreia morna dos irmãos Arriaga, que agora precisam se superar no próximo projeto para comprovarem que o talento realmente está no sangue da família.


NOTA 5


 

BlackBerry (Idem, 2023) | Canadá/Estados Unidos


Há um componente de evidente interesse em conhecer a história por trás da criação do primeiro smartphone do mundo e Blackberry é eficiente ao trazer detalhes aparentemente descartáveis, mas que fazem toda a diferença, como ao mostrar alguém aprendendo a digitar no celular usando os polegares (algo natural hoje em dia, mas nem tanto há 27 anos atrás). Igualmente curioso é perceber a arrogância de Mike Lazaridis, inventor do produto que dá nome ao filme, que ao subestimar o iPhone, permitiu que sua invenção fosse massacrada da noite para o dia, com Steve Jobs decretando em minutos a obsolescência de um dispositivo que revolucionou o mercado e esteve no topo por uma década.


Menos eficientes, no entanto, são as piadas recorrentes envolvendo os trabalhadores da RIM, transformados em nerds infantis incapazes de encararem um dia de trabalho de forma profissional. Aliás, nesse sentido, o Doug Fregin interpretado pelo próprio diretor Matt Johnson é facilmente a criatura mais irritante de toda a projeção, demonstrando que como ator, Johnson é um ótimo diretor. Entregando-se a caretas sempre que a câmera para em seu rosto (leia-se: congelando sua expressão ao dizer “oh”), Doug é uma caricatura ambulante, com um figurino extravagante e um penteado que o faz parecer uma mistura de Björn Borg com Andy Samberg, contrastando ao Mike Lazaridis de Jay Baruchel (chegaremos nele mais adiante). Mas quando o personagem não está tentando (de forma fracassada) ser engraçado, infelizmente está se opondo às escolhas naturais feitas pelo amigo, inicialmente retratado como um sujeito facilmente manipulável.


Mas Baruchel (O Aprendiz de Feiticeiro) não faz muito melhor que o colega, limitando-se aos mesmos trejeitos desajeitados típicos dos personagens tímidos que vem interpretando em toda a sua carreira. Seu diferencial é poder ilustrar a evolução do pensamento de Mike enquanto executivo, ao contrário de Doug, que permanece um adolescente inconsequente apegado aos dias de cinema da empresa. Por outro lado, Mike pode até demonstrar uma bem-vinda mudança de atitude, passando a se impor e a dedicar-se ao trabalho, mas seu arco dramático resvala nas mesmas convenções de sempre, já que eventualmente se tornará um engravatado frio e inescrupuloso, além de sucumbir à arrogância.


É uma pena que o roteiro não demonstre o menor interesse em mostrar Mike e os demais personagens fora da empresa, negando suas vidas particulares ao público. Assim, ao impedir que conheçamos as intimidades de cada um, os homens de Blackberry passam a carecer da mesma humanidade que a maioria dos vilões retratados por esse tipo de filme. E aqui vale uma menção à ausência feminina quase completa, já que a primeira mulher a ocupar um espaço de algum destaque surge apenas no terço final de projeção.


Se por um lado é divertido ver na tela referências a várias obras marcantes da cultura popular, como Os Caçadores da Arca Perdida, Duna e Clube dos Cinco, na quinquagésima vez que alguém aparece recitando um diálogo famoso, a reação passa a ser apenas de indiferença. Como se não bastasse a natureza gratuita desses momentos, prepare-se para ver Doug usando uma infinidade de camisas com estampas de jogos famosos, desde Wolfenstein a Mortal Kombat.


A montagem, em contrapartida, é competente ao atribuir um ritmo fluido e dinâmico à narrativa, impedindo que os momentos em que a narrativa se entrega ao "tecniquês" se tornem entediantes. Nessas passagens, a produção se escora no mesmo trabalho de câmera que marcou a linguagem da série The Office e que mais tarde serviria de inspiração também para A Grande Aposta, filme que rendeu um Oscar e um estilo a Adam McKay. Assim como na excepcional sitcom protagonizada por Steve Carell, a câmera se torna praticamente uma personagem, movimentando-se livremente, mudando de (ou perdendo) foco e, claro, investindo em zooms repentinos para captar reações e detalhes.


Criativo ao permitir que as legendas que informam a passagem do tempo acompanhem a evolução das fontes (e dos teclados), Blackberry ainda falha na caracterização de Jim Balsillie, cujo intérprete (Glenn Howerton, da comédia It’s Always Sunny in Philadelphia) ostenta uma careca tão mal raspada que torna-se absolutamente artificial. Apresentando-se como um sósia desbocado de Marcus Lemonis (do programa O Sócio), Balsillie se beneficia da energia transmitida por Howerton, fazendo com que o personagem seja a figura mais divertida da história, mesmo que suas atitudes nem sempre contribuam para estimular nossa torcida por ele.


Embora não tão inventivo e original quanto julga ser, Blackberry prova ser mais uma história envolvente e ocasionalmente divertida sobre a origem de uma marca famosa, assim como os superiores Tetris e Air; e o inferior Flamin’ Hot, mostrando de quebra que definitivamente não há bons samaritanos no mundo corporativo.



NOTA 6


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