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Festival do Rio 2025 | Dia 6

  • Foto do escritor: Guilherme Cândido
    Guilherme Cândido
  • 8 de out.
  • 8 min de leitura

O Agente Secreto

(Idem, Brasil)


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Quando O Agente Secreto enfim estrear comercialmente nos cinemas brasileiros, as comparações com Ainda Estou Aqui devem tomar conta das conversas pós-sessão e dominar as tradicionalmente beligerantes redes sociais.


Se Walter Salles dirigiu o retrato de uma família em frangalhos por ter sido diretamente impactada pelo regime militar imposto em 1964, Kléber Mendonça Filho usa esse período sombrio de nossa história como mero pano de fundo. E o tom do atual vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional não poderia ser mais diferente daquele sentido na produção escolhida para tentar o bicampeonato no ano que vem.


Pois Marcelo Alves (Wagner Moura) não está trabalhando ativamente para derrubar os militares. Aliás, em nenhum momento o vemos sequer pegar uma arma. Seu único desejo é poder viver de acordo com os próprios princípios ao lado do filho, de quem decidiu jamais se separar novamente.


Partindo desses pressupostos, Kléber Mendonça Filho consegue a proeza de criar um mosaico vibrante, bem-humorado e multifacetado sem abandonar a seriedade de todos os temas espinhosos consequentes de uma história envolvendo a Ditadura. E o faz estabelecendo uma série de paralelos com Retratos Fantasmas (2023), projeto anterior em que combinava duas de suas maiores paixões: o Cinema e Recife. Não por acaso, o projecionista homenageado naquele documentário é reapresentado aqui, agora como personagem.


Mas as ambições do cineasta pernambucano não param por aí, uma vez que ele aproveita cada segundo das (bem aproveitadas) quase duas horas e quarenta minutos de projeção, para contar uma história plural e humana, com destaque para a comunidade de refugiados onde Marcela passa a viver. E é curioso como ele faz uma descrição precisa de um personagem gay sem mencionar diretamente sua sexualidade.


Um dos maiores talentos de nosso Audiovisual, Wagner Moura tem o oportunidade de encarnar o personagem mais complexo de sua rica e versátil carreira, já que Marcelo não é um sujeito explosivo e falador. Ao contrário, ele obriga o ator baiano a transmitir todas as suas nuances através do olhar e da forma como utiliza as poucas palavras que profere. Homem simples, tudo o que ele quer é estar ao lado do filho e nada mais, não sendo um problema viver discretamente como um arquivista enquanto os abusos dos milicos se faz cada vez mais presente.


O contraponto reside na escolha da fofíssima Tânia Maria para encarnar Dona Sebastiana, a líder da tal comuna de refugiados. Mesmo provocando altíssimas gargalhadas sempre que aparece em cena, a idosa contribui para a narrativa não só com pérolas de sabedoria, mas também através de um discurso que corrobora a humanidade almejada por Mendonça Filho. Num mundo justo, Tânia Maria não só estaria sendo considerada para todos os prêmios internacionais possíveis, como estrelaria um filme derivado inteiramente focado em sua sensacional personagem.


O Agente Secreto também é extremamente eficaz ao condensar elementos caros à cultura brasileira sem soar panfletário ou ufanista. Seja na Música, no Cinema, na Arquitetura ou mesmo através da cuidadosa recriação histórica, é impossível ver o filme sem identificar o país no qual é ambientado e grande parte dessa eficácia reside na obsessão do diretor com a verossimilhança, o que gera uma reconstituição minuciosa.


Esses detalhes possibilitam ao diretor azeitar sutilmente as situações vividas pelos personagens. Na excepcional sequência de abertura, por exemplo, Marcelo se assusta com a presença de um cadáver no chão de um posto de gasolina. Há tempos aguardando remoção, o corpo ilustra não apenas a banalidade da violência na época, mas também o deslocamento do contingente policial para assegurar o bem-estar dos foliões recifenses, já que a narrativa se desenrola durante o Carnaval. Indo além, Mendonça Filho sutilmente tira sarro dos policiais militares ao trazer um delegado com manchas de batom e confete no cabelo ao atender um chamado.


Trazendo inúmeras homenagens ao Cinema que vão desde a exibição de trechos de clássicos nacionais e internacionais até uma sequência surreal envolvendo uma perna mutilada (a culminância de uma referência recorrente a Tubarão), O Agente Secreto é a obra mais completa de um cineasta no auge de suas habilidades como manipulador dos signos cinematográficos.


Filme mais premiado do Festival de Cannes (incluindo Melhor Ator e Melhor Diretor), a produção já foi escolhida para representar o Brasil na corrida pelo segundo Oscar de Melhor Filme Internacional. O percurso é longo, sinuoso e acidentado, mas caso a indicação se confirme, as chances de uma segunda vitória consecutiva são reais.


NOTA 8,5



Dois Pianos

(Deux Pianos, França)


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Já faz tempo que o cineasta francês Arnaud Desplechin está devendo. Na verdade, infelizmente, conforme sua filmografia vai ficando cada vez mais extensa, raros são os filmes realmente dignos de nota. Loucos Por Cinema!, exibido na edição passada do Festival do Rio, talvez seja o seu trabalho menos problemático em muitos anos e, se depender de seu mais novo projeto a desembarcar no Rio de Janeiro, continuará sendo.


Escrito e dirigido pelo próprio Desplechin, Dois Pianos reúne um elenco que mescla novos e experientes talentos, com destaque para o astro François Civil, a estrela em ascensão Nadia Tereszkiewickz e a veterana Charlotte Rampling. Civil, visto recentemente no razoável O Bom Professor, encarna Mathias Vogler, um músico genial que atingiu o apogeu ainda jovem e hoje enfileira turnês debruçado no próprio sucesso, até que um pedido de sua antiga mentora Elena (Rampling, em cartaz com Uma Bela Vida) o faz voltar à Lyon, sua terra-natal. Lá ele acaba reencontrando Claude (Tereszkiewicz, presente tambem em Cara ou Coroa? Outra atração do Festival do Rio 2025), velho amor que hoje é casada e possui um filho, mas uma tragédia acontece e com ela segredos vêm à tona para mudar a vida de Mathias.


O pianista, infelizmente, é uma das criações menos inspiradas de Desplechin, tornando-se o tipo de gênio problemático e incompreendido tão comum em obras como essas. Se escapa de se tornar uma figura enfadonha, é graças a seu intérprete, que apesar de passar longe de oferecer sua melhor performance, traz carisma e simpatia suficientes para mantê-lo digno de nossa torcida. O que se revela vergonhoso é o desperdício indefensável de Rampling, cuja personagem some repentinamente no meio da história. A impressão é que o realizador não sabia exatamente o que fazer com Elena depois de utilizá-la para trazer Mathias de volta para casa. Após duas ou três cenas tentando forçar alguma relevância à personagem, Desplechin simplesmente desiste e foca em Claude, que ao menos tem algo a acrescentar no meio do conflito melodramático que amarra a narrativa no segundo ato.


O problema é que tal conflito é diluído numa série de clichês que fazem de Dois Pianos uma derivação de filmes melhores sobre paternidade e mentes brilhantes atormentadas, inclusive nessa edição do Festival, que conta com uma parcela inesperadamente grande desse tipo de produção. Para piorar, não há sequer um bom aproveitamento de Lyon, uma cidade famosa por exibir traços tanto urbanos, quanto bucólicos.


A impressão é a de que Arnaud Desplechin perdeu a capacidade de tirar coelhos da cartola, seguindo em atividade apenas para tentar manter vivo um legado que filme a filme perde potência. E não há nada pior para um artista do que se acomodar na mediocridade.


NOTA 4


Dois Procuradores

(Zwei Staatsanwälte, Letônia/Romênia/Ucrânia)


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Indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano, Dois Procuradores é um filme de ficção que traz a marca registrada de um cineasta que também se consagrou como documentarista. Mesmo quando provoca terror ou incredulidade, a produção jamais perde de vista o realismo cru e cruel idealizado por Sergey Loznitsa, nascido onde hoje é a Bielorrússia.


Adaptada pelo próprio Loznitsa a partir das memórias do escritor russo Georgy Demidov (1908-1987), que de fato passou quase quinze anos preso por se opor ao regime implacável de Stalin, a narrativa se passa na União Soviética de 1917 ano em que o expurgo stalinista estava a pleno vapor, com perseguições políticas controlando a população através do medo.


Um desses perseguidos é Stepniak que após ser preso, envia uma carta solicitando a ajuda de Kornyev, um promotor jovem e íntegro determinado a trazer justiça, mas que esbarra não só nos desmandos criminosos do serviço de inteligência russo, como também num sistema feito para ser impenetrável utilizando a burocracia como escudo.


A partir dessa perspectiva, o mesmo teste de resiliência imposto a Kornyev é oferecido ao espectador, que sente a passagem arrastada do tempo e os seguidos obstáculos que insistem em aparecer. Para alcançar esse objetivo, Loznitsa jamais movimenta a câmera, mantendo-a estática em planos longos que aos poucos vão minando também o espectador. Ele é especialmente inteligente ao evitar incluir legendas e outras intervenções gráficas, passando informações importantes de forma orgânica, como ao deixar um relógio visível para tomarmos nota do tempo que Kornyev foi obrigado esperar para ser atendido, por exemplo.


O promotor é interpretado pelo ex-boxeador Alexander Kuznetsov (Chefes de Estado) com uma firmeza que é sentida através do olhar. E o fato de Kornyev manter um tom de voz baixo e ameno ajuda a construir essa aura resiliente crucial para o desenvolvimento do filme. Além disso, a paleta escurecida e fria da fotografia são um espelho da realidade sem vida na qual o protagonista está imerso. Da mesma forma, o design de produção, com seus interiores banhados a madeira (as repartições públicas) e concreto (as prisões), corroboram essa tese, merecendo créditos por sobreviverem sem danos aos planos longos de Loznitsa, que jogam luz sobre cada elemento em cena.


Contando com um desfecho que soa ao mesmo tempo pessimista e fiel ao que fora construído até então, Dois Procuradores competiu pela Palma de Ouro em Cannes 2025 e chega aos cinemas de todo o Brasil no mês que vem.


NOTA 7,5



A Voz de Hind Rajab

(Sawt Hind Rajab, Tunísia)


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Às vezes um filme é mais do que uma obra de Arte. Às vezes ele é uma obra necessária. Um testemunho, um manifesto ou até mesmo uma denúncia. The Voice of Hind Rajab, no original, é exatamente isso, um projeto essencialmente político adaptado para uma linguagem cinematográfica a fim de ter um alcance maior.


A denúncia, no caso, é dos crimes hediondos cometidos pelo Estado de Israel contra a Palestina, utilizando força militar para subjugar um povo praticamente indefeso. Essa covardia vem polarizando as discussões geopolíticas e a produção dirigida pela tunisiana Kaouther Ben Hania certamente e felizmente intensificará o debate ao chamar atenção para uma situação que se tornou insustentável já há algum tempo.


Ben Hania faz uma dramatização de um episódio triste envolvendo o massacre perpetrado pelos israelenses, utilizando de arquivos reais para potencializar o impacto de sua abordagem, como ligações do serviço de emergência palestino que foram gravadas. Numa dessas gravações, está a menininha Hind Rajab, única sobrevivente de uma viagem de carro em família que termina em brutalidade. Como única sobrevivente, ela mobiliza todo o departamento de emergência, num esforço coletivo para conseguir um resgate.


Atores foram escalados para interpretarem os funcionários públicos, mas tudo o que eles ouvem (e consequentemente nós também) são reproduções de chamadas reais, mostrando o desespero genuíno de pessoas marcadas para morrer por um regime genocida que segue operando impunemente.


Se a força do filme é incontestável do ponto de vista político, como arte há problemas igualmente inquestionáveis, efeitos colaterais dessa lógica invertida que gerou o longa-metragem. Afinal, ao invés de um filme feito para absorver as denúncias, temos a denúncia ditando escolhas narrativas. Assim, o resultado é um projeto que se adapta ao meio utilizado (o Cinema) para conquistar seu principal objetivo: fazer uma denúncia chegar ao maior público possível.


Não que A Voz de Hind Rajab seja execrável (e não é), mas é difícil de defender o modelo escolhido para acolher a narrativa, que em seus melhores momentos remete a outro filme, o soberbo Culpa (que gerou um bom remake hollywoodiano com Jake Gyllenhaal). As comparações com a película norueguesa, que também se passa num único ambiente trazendo um telefonista de emergência tentando ajudar pessoas em risco, só enfraquecem os esforços de Kaouther Ben Hania.


Quem não está familiarizado com a linguagem adotada, certamente aplaudirá os recursos utilizados. Aos demais, sobrará uma trama enxuta que visa torturar ao máximo o espectador, impondo obstáculos aparentemente inesgotáveis a seus bravos personagens. Nesse ponto, as repetições são inevitáveis, com destaque para a burocracia invencível do país. Por outro lado, o roteiro merece elogios por não eleger um vilão, construindo personagens que possuem a boa vontade em comum, colaborando para a construção de uma atmosfera tensa, mas que permite o conforto do humanismo, que surge como um abraço figurativo no espectador.


O que não impede A Voz de Hind Rajab de ser um filme envolvente, tenso e extremamente impactante, justificando os nove prêmios recebidos no Festival de Veneza, onde além de ter vencido o Grande Prêmio do Júri, foi aplaudido de pé por 24 minutos, um recorde para o evento.


NOTA 7,5


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