Festival do Rio 2025 | Dia 9
- Guilherme Cândido
- há 3 dias
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Atualizado: há 2 horas
Romaria
(Romería, Espanha)

Vencedora do Leão de Ouro em 2022 com Alcarràs, quando M. Night Shyamalan presidiu o júri do Festival de Berlim, a cineasta Carla Simón volta ao trabalho com mais uma história focada em cutucar feridas abertas de uma família. A catalã parece confortável em observar de perto as dinâmicas familiares para fazer observações sobre a sociedade como um todo.
Nesse caso, o roteiro também assinado por Simón acompanha Marina (Llúcia Garcia), que aos 18 anos de idade resolve viajar à Vigo com o objetivo de conseguir um documento que só seus avós paternos são capazes de fornecer. Determinada a realizar o sonho de cursar Cinema, ela abraça os riscos de desvendar os segredos obscuros do passado de seu pai ao mesmo tempo em que embarca em sua própria jornada de autoconhecimento.
Beneficiado por uma fotografia que valoriza as paisagens exuberantes do litoral espanhol, Simón não resiste em pintar um retrato vivaz e vibrante da juventude, mesmo que o passado desconhecido à protagonista apareça vez por outra soltando faíscas entre os membros daquela família.
Que por sua vez é desenvolvido com extremo cuidado e carinho pela roteirista, fazendo questão de concebê-los como pessoas complexas e multifacetadas, a exemplo da protagonista. Repare como Marina, da mesma forma que é punida pela própria curiosidade indomável, deixando escapar sentimentos negativos ao tomar nota de como uma parcela da família enxerga seu pai, também é capaz de valorizar um gesto do avô, mostrando-se desconfortável com a generosidade do sujeito.
Aliás, o pilar de Romería (no original) é justamente o confronto de Marina com o próprio passado, tendo de reaprender o que ela considerava como fatos. As contradições, claro, são indigestas, sobretudo quando encaradas durante a juventude e Llúcia Garcia é inteligente por transmitir a confusão mental da moça sem recorrer a extremos, permanecendo fiel ao seu perfil pacato, mas sem sacrificar a sinceridade que lhe é tão peculiar.
Ambientada em 2004 e contada por meio de capítulos que contemplam cada dia da viagem de Marina, a narrativa perde tração lá pelo segundo ato, mas Carla Simón logo apela para uma sequência mais lúdica envolvendo uma fuga da protagonista com um primo.
Essa passagem, inclusive, é potencializada pelas lentes de Hélène Louvart (parceira do brasileiro Karim Aïnouz em A Vida Invisível), diretora de fotografia com olhar afiado para belezas naturais. O destaque, no entanto, fica para a escolha narrativa de Simón, que faz dessa revisita hipotética a um acontecimento crucial na vida dos pais (com os mesmos intérpretes de Marina e do primo, vale ressaltar), um longo e exótico interlúdio, refletindo diretamente a imaginação da protagonista.
NOTA 6,5
Quase Deserto
(Idem, Brasil)

Depois de Uma Batalha Após a Outra sacudir os cinemas mês passado, seria difícil para qualquer produção subsequente tratar do tema imigração. O discurso eloquente e contundente de Paul Thomas Anderson reverbera até agora e deve permanecer até o Oscar 2025, do qual não ficará de fora. É o que acontece a Quase Deserto, anos-luz atrás da obra protagonizada por Leonardo DiCaprio e que tropeça nas próprias pernas ao construir uma trama convoluta, repleta de outros temas que acabam ofuscando aquele que deveria ser o elo central.
Dirigido pelo brasileiro José Eduardo Belmonte e escrito pelo mesmo ao lado de Carlos Marcelo e Pablo Stoll, o filme é ambientado em Detroit no momento em que dois imigrantes latinos “indocumentados” salvam uma jovem neurodivergente sem ter ideia de que ela é a testemunha-chave de um crime. Percorrendo as ruínas de uma antiga Terra Prometida, eles passarão por provações para se manterem vivos.
Assim como François Ozon, diretor do filme visto antes de Quase Deserto, o brasileiro José Eduardo Belmonte é um workaholic incurável, capaz de entregar duas produções completamente distintas entre si no mesmo ano, infelizmente sem receber o reconhecimento que merece. Só em 2023, por exemplo, ele apresentou os bons Uma Família Feliz e O Pastor e o Guerrilheiro.
Em Quase Deserto ele volta a exibir cuidado com a mis en scene e é hábil ao construir uma atmosfera opressiva, mas seus esforços são sabotados por um roteiro desfocado e que ainda se apressa para chegar ao final, consequentemente deixando pontas soltas pelo caminho. Dividido em capítulos dedicados a cada personagem do trio principal, destacando a língua materna de cada um, o texto desvia da problemática de imigração e abraça premissas claramente criadas para injetar ação no projeto (ponto forte do diretor).
Em contrapartida, a utilização de Detroit como um microcosmo decadente e cheio de rachaduras, funciona ao estabelecer paralelos com a realidade dos personagens, tecendo também um comentário sobre as pessoas que decidem abandonar o calor humano de seu país de origem para se submeterem à putrefação da cidade norte-americana.
Ao menos estabelecendo um ritmo envolvente que culmina num desfecho coerente, Quase Deserto parte de uma ideia promissora para alcançar resultados apenas regulares.
NOTA 6
O Estrangeiro
(l’Étranger, França)

Com uma longa carreira marcada por uma surpresa a cada novo trabalho, François Ozon finalmente faz uma adaptação do clássico O Estrangeiro (1942) de Albert Camus. Finalmente, pois era uma questão de tempo até o altamente influente best-seller ganhar uma versão assinada pelo cineasta mais inquieto de seu país. Não bastasse apresentar um longo-metragem anualmente, o francês se certifica de reinventar-se em cada novo processo. Com isso em mente, ele sai do agradável melodrama Quando Chega o Outono (2024) e entra no mundo preto e branco de L’Étranger, no original, que teve sua première no Festival de Veneza.
Espécie de precursora dos assassinos sensuais modernos, principalmente Tom Ripley, a história de um francês pacato enfrentando os tribunais argelinos após assassinar um árabe não é inédita nas telonas, uma vez que o grande Luchino Visconti iniciou os trabalhos ao adaptá-la aos cinemas em 1967 com Marcello Mastroianni no papel principal.
O Meursault da vez é Benjamin Voisin, astro em ascensão que viu a carreira decolar justamente através de sua colaboração anterior com Ozon, o romântico Verão de 85. Numa antítese àquela composição ensolarada, Voisin surge estoico na pele de um personagem tão fascinante quanto difícil de interpretar. Avesso a mentiras, o que lhe permite falar exatamente tudo o que pensa, o protagonista é uma figura transparente, agindo pelo que considera “fazer sentido”. Não há uma bússola moral ou uma convenção social forte o bastante para suplantar sua crença inexorável de que, no final das contas, nada importa.
Voisin capta com perfeição a aura desinteressada de Meursault, encaixando-o com exatidão na recriação histórica de Ozon, um perfeccionista por natureza. A atmosfera de mistério dos anos 50 é ressaltada por uma fotografia em preto e branco que o torna tão atemporal quanto o tema principal que desenvolve.
Dividido em duas partes, O Estrangeiro dedica a primeira metade a apresentar o niilismo de seu anti-herói, apenas para confrontá-lo no ato final, quando o fato de aquele não chorar no funeral da mãe torna-se um crime mais chocante e hediondo do que um assassinato aparentemente sem motivo. Como julgar as motivações de um homicida se, para ele, “nada tem importância?”
Mas Ozon não deixa ponto sem nó e faz questão de mergulhar na mente de Meursault, depois de uma longa jornada tangencial. Os diálogos afiados entre o protagonista e um padre, por exemplo, surpreendem por representarem o primeiro momento de expressividade de alguém tão acostumado ao estoicismo, mas também pela eloquência de seus argumentos.
No final das contas, Meursault, em sua ausência de reação, acaba se tornando o interlocutor perfeito, absorvendo lamentos e divagações de membros de uma sociedade que tanto clama por amor e reciprocidade, mas que não sabe reconhecê-los, o que explica os relacionamentos tão conturbados expostos pela narrativa. É o que marca especialmente a participação do veterano Denis Levant, cujo personagem possui uma relação no mínimo confusa com o cachorro de estimação.
Tristemente contemporâneo, O Estrangeiro é mais um trabalho simultaneamente profundo e esfíngico de Ozon, destacando-se pela sofisticação que apresenta em absolutamente todos os aspectos.
NOTA 8
Valor Sentimental
(Affeksjonsverdi, Noruega)

O Cinema de Joachim Trier é calcado nas fortes emoções, como fica claro na brilhante trilogia de Oslo, que começou com o ótimo Começar de Novo (2006), chegou ao ápice em Oslo, 31 de Agosto (2011) e culminou no excelente A Pior Pessoa do Mundo (2021). São produções intimistas que retratam sensações e sentimentos universais, evocando o calor humano das relações. Valor Sentimental não só endossa essa percepção, como possui algumas das sequências mais fortes da carreira do diretor.
Isso porque, como já se tornou sua marca registrada, o roteiro que escreveu ao lado de Eskil Vogt (seu parceiro no bom Thelma) acompanha um núcleo fechado de personagens, no caso um pai e suas duas filhas, que se reencontram após a morte da mãe destas. E o que une essas três pessoas além do laço familiar é a Arte.
Nora (Renate Reinsve), a mais velha, é atriz de teatro e mantém uma relação distante, mas respeitosa com o pai, Gustav (Stellan Skarsgaard), que por sua vez é um respeitado cineasta. Já Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas), a caçula, abandonou cedo a carreira artística, coincidentemente logo após ter estrelado o filme mais prestigiado do pai.
Um dos maiores triunfos do filme vencedor do Grande Prix de Cannes é justamente a forma como o roteiro revela o que motivou as rusgas tão resistentes que um possui com o outro, especialmente Gustav, cuja ausência foi sentida sobretudo por Nora. O que acaba reaproximando os dois e reconstruindo o seio familiar é o novo projeto idealizado pelo cineasta, que enxerga a primogênita como ideal para protagoniza-lo.
Não bastasse o bom aproveitamento da Arte como cura para as feridas familiares, Trier ainda constrói um prólogo não menos do que excepcional ilustrando a importância de uma casa para o trio protagonista. Afinal, este legítimo personagem viu gerações crescerem em seus interiores e a rachadura que aparece numa das paredes é só um dos elementos que escancaram o imóvel como uma metáfora para esta família “quebrada”.
Contando com longos fade outs para marcar transições, Valor Sentimental tem um ritmo impecavelmente natural, desfilando seu drama cada vez mais possante sem cometer o pecado de tentar evitar o humor. Pois o filme usa com sabedoria os alívios cômicos, que chegam sem que percebamos e exatamente por isso funcionam tão bem. Da mesma forma, até mesmo os risos são fundamentados, como a divertida sequência de abertura que acaba revelando uma característica importante de Nora.
E se a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas estranhamente ignorou a performance complexa de Renate Reinsve em A Pior Pessoa do Mundo, desta vez a indicação é inevitável, tamanho o entendimento da atriz em relação à obra de Trier. Além do olhar triste denunciando falsas demonstrações de felicidade, Reinsve transmite uma carga de frustração e ressentimento essenciais não apenas para sedimentar o terceiro ato, mas para complementar a abordagem mais contida de Stellan Skarsgaard, outro que dificilmente será esnobado nessa temporada de premiações.
A força do elenco é apenas um reflexo da precisão quase cirúrgica com que Valor Sentimental é rodado, algo que fica claro também na fotografia texturizada do dinamarquês Kasper Tuxen (O Aprendiz) e seus enquadramentos perfeitos. O design de produção faz maravilhas principalmente com a casa, definitivamente um organismo vivo que sente.
Denso, Valor Sentimental é o tipo de filme que demora a sair da mente mesmo depois que os créditos começam a rolar, transformando o impulso de aplaudí-lo num gesto absolutamente natural.
NOTA 9