"Guerra Civil" é um alerta visceral sobre a tensão política que nos divide
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Guerra Civil" é um alerta visceral sobre a tensão política que nos divide


O crítico e diretor francês Éric Rohmer (1920-2010) uma vez disse que “todo bom filme é um documento de sua época”. Guerra Civil é concebido pelo cineasta e roteirista Alex Garland como o retrato realista de seu tempo, ainda que numa espécie de universo alternativo. Ou ao menos é o que esperamos, já que sua história se desenvolve como um conto de advertência, alertando que o cenário político febril que tem dividido nações, pode representar uma ruptura muito mais séria do que imaginamos.


Como o título já escancara, uma segunda Guerra Civil eclode nos Estados Unidos da América a partir do momento em que Texas e Califórnia resolvem se separar do restante do país, formando uma coalizão que se organiza para eliminar o homem que exerce pela terceira vez seguida o mandato de presidente da república. Dois lados se formam e materializam um confronto armado que vem se desenhando há anos através de uma disputa por poder que recentemente produziu uma invasão ao capitólio como um lembrete de que este filme pode muito bem ganhar a famosa expressão “baseado em fatos reais” num futuro não muito distante.

Tiros e explosões cortam o silêncio de uma nação transformada em zona de guerra, com ruas, prédios e veículos destruídos e/ou abandonados, situação similar ao que acontece em grande parte da Ucrânia, por exemplo. Um dos efeitos imediatos é a desvalorização do dinheiro, com os dólares canadenses valendo muito mais do que os americanos. O capitalismo, símbolo do imperialismo do Tio Sam, desaparece para que ressurja o bom e velho escambo. A água, artigo de luxo, torna-se uma valiosíssima moeda de troca, normalmente equiparada ao combustível, elemento indispensável para grandes viagens, isto é, se você tiver a coragem de reivindicar o direito de ir e vir.

É exatamente o que acontece com Lee Smith (Kirsten Dunst), uma fotojornalista veterana cujos objetivos se cruzam com os de Joel (Wagner Moura), repórter da Reuters. Enquanto ela pretende encarar a linha de frente para documentar os estragos da guerra que dividiu seu lar, ele se dispõe a cumprir a incauta tarefa de realizar aquela que pode ser a última entrevista com o presidente estadunidense, agora persona non grata no próprio país. À dupla se juntam a novata Jessie (Cailee Spaeny), deslumbrada com a oportunidade de trabalhar ao lado de Lee, sua inspiração, e Sammy (Stephen McKinley Henderson), correspondente político que mostra indiferença ao seguir cobrindo o último evento de sua carreira. Este grupo de pessoas casadas com a profissão pode até ser heterogêneo, mas sua formação não tem nada de aleatória. São três gerações diferentes de jornalistas, cada qual possuindo princípios e crenças moldados pela escalada dos acontecimentos. Uma vez que o cenário está montado e os personagens deixam Nova York rumo a Washington D.C., Guerra Civil se converte num road movie que só para a fim de que possamos contemplar alguns minutos de pura beleza em meio ao caos aterrorizante.

Esse tipo de contraste é caro ao Cinema de Alex Garland, escritor britânico que transitou praticamente por todas as vertentes do Entretenimento, equilibrando horror e encantamento ao contar histórias complexas, mas nem sempre consistentes, como seu anterior Men – Faces do Medo. Em Civil War (no original), ele mostra uma evolução admirável não apenas como diretor, mas também como contador de histórias.

Afinal de contas, em última instância, seu mais novo projeto não é exatamente um filme de guerra ou um simples blockbuster de ação, como vem sendo divulgado por aí (o que deve decepcionar boa parte do público que for ludibriado pelo marketing). É, na verdade, uma carta de amor ao jornalismo travestido de alerta para uma sociedade que não parece ter noção do quão tênue é a linha que atualmente separa o debate do confronto. É como se a rivalidade política simplificasse a discussão de ideias e o radicalismo se sobrepusesse à argumentação. Não chega a ser uma novidade, ainda mais num país onde a violência é historicamente presente. Tiroteios em escolas, policiais assassinos e manifestações sociais regadas a sangue estão no DNA dos norte-americanos.

Partindo desse prisma, Alex Garland é inteligente ao esconder do público os motivos que levaram à tal Guerra Civil. Negar ao espectador o contexto sociopolítico não deveria ser encarado como uma falha, pois nessa história “tomar partido” não é a solução, mas o problema. Não que o script almeje isenção ou tente embaçar as fronteiras entre os dois lados políticos que se digladiam, mas sim porque o conflito chegou num ponto em que fincar os pés num lado, perdeu seu propósito. Torcer por um dos lados não é o que Garland pede ao público. Até porque, há inimigos em ambos.

Exatamente por isso, escolher um grupo de repórteres foi o melhor meio de articular o discurso, ao mesmo tempo permitindo-lhe defender o bom e velho jornalismo, tão raro hoje em dia. Não por acaso, em determinado momento, Lee vai socorrer Jessie logo após esta avistar uma imagem chocante. Estarrecida, a jovem questiona a impassividade da fotojornalista, que responde: “meu trabalho é apenas registrar, deixo para o público qualquer tipo de julgamento”. É fácil exibir esse tipo de frieza após décadas dedicadas a cobrir acontecimentos que revelam o pior lado da humanidade, não deixando espaço para idealismo ou empatia, que por sua vez ainda sobram na mente virginal da aspirante a fotógrafa de guerra.

A eterna expressão de cansaço de Kirsten Dunst cai como uma luva para Lee, uma jornalista que há muito tempo perdeu a fé no jornalismo e, consequentemente, na humanidade. Tanto, que seu primeiro impulso ao ver uma bomba explodir é justamente fotografar seus desdobramentos (e desmembramentos). O rosto quase nu da ex-Mary Jane Watson também revela sutilmente outros traços da personalidade de Lee, como quando ela se vê num espelho enquanto experimenta um vestido. Algo módico assim a lembra de um mundo que atualmente não passa de uma memória distante. Já Jessie percorre um arco dramático ainda mais duro, e cumprido com eficiência por Spaeny, distanciando-se de Priscilla, seu papel mais recente (e famoso). Garland é feliz mais uma vez ao colocar, na mesma cena, as duas jornalistas reagindo a um evento-chave, catártico para ambas. A jovem conclui sua transformação ao sacar a câmera e partir para cima do que vê, enquanto a mais experiente, permanece estática.

O destaque do elenco, no entanto, vai para o brasileiro Wagner Moura: famoso pelas performances grandiloquentes e pelos personagens vigorosos, ele mostra em Joel, facetas pouco exploradas em sua carreira. O repórter é um meio-termo forçado entre as duas mulheres com quem compartilha a jornada de mais de mil quilômetros dentro de um carro. Dono de uma lábia irresistível, é visto seduzindo mulheres e persuadindo homens durões com a mesma facilidade, habilidades contrastantes na atual conjuntura, fazendo com que Joel seja a figura mais carismática e fascinante da produção, mantendo a leveza mesmo diante de quase todas as atrocidades que testemunha. Não que isso o impeça de questionar uma jovem balconista que opta pela alienação (“você sabe o que está acontecendo lá fora, não sabe?”).

Nessa sequência, inclusive, o diretor adota uma linguagem que espelha a lógica interna do próprio filme, refletindo o discurso pró-imagem num flerte com a metalinguagem. Em Guerra Civil, da mesma forma que não importa o lado que você defenda, (se você é compelido a integrar a divisão, é porque tudo já foi pelos ares), a imagem é, ao mesmo tempo, tudo e somente o que importa para os jornalistas. “Se eu levar um tiro, você vai me fotografar?”, pergunta alguém, ouvindo um “O que você acha?”. Ao colocar a imagem num pedestal, onde o ângulo exerce um papel maior do que se pensa, Garland coloca o pensamento de seus personagens em prática.

Repare na sequência onde o quarteto de jornalistas chega a uma cidade estranhamente incólume. Lee estranha, mas é Sammy quem mata a charada ao pedir para que a colega olhe “discretamente” para o topo dos edifícios. E é nesse momento que a câmera de Garland se ajusta para revelar do que Sammy estava falando. Fosse um caso isolado, até poderia invalidar o argumento, mas o cineasta volta a investir nessa estratégia quando um tiroteio irrompe repentinamente em outro local: Lee se joga no chão, protegendo-se dos disparos, mas sua expressão apreensiva em direção ao longínquo atirador, muda radicalmente quando avista algo a poucos centímetros: uma flor, com a lente mudando o foco para nos brindar com um daqueles instantes de beleza supracitados.

O roteiro ainda encontra formas de tecer comentários sobre a importância do papel que a Imprensa exerce na sociedade. Aos olhos de Garland, ela também é uma das culpadas pelo que acontece e caso o espectador queira decifrar quais são os lados da história, o realizador deixa algumas pistas justamente nas sequências em que as notícias enchem a tela (“americanos de bem” é um termo revelador). Colocar o sensacionalismo e a busca inconsequente pelo engajamento lado a lado com a objetividade e o compromisso de um punhado de profissionais é a maior contribuição de Garland para o filão dos “filmes sobre jornalismo”.

Os espectadores que forem aos cinemas buscando algo mais explosivo, terão de superar a estrutura episódica do roteiro e aguardar pacientemente pelo terceiro ato, que chega não com um ou dois pés na porta, mas como um disparo de bazuca na parede inteira, quando uma longa invasão é marcada por uma pirotecnia que ao invés de soar gratuita, espanta pelo realismo alcançado, através de uma aula de mise en scène que enfatiza as minúcias do procedimento militar. A tensão, abundante na filmografia de Garland e fio condutor de Guerra Civil (a subida pelas escadas de um prédio comprova sua força), divide espaço com a espetacularização de explosões e tiros variados, com destaque para a participação implacável de um helicóptero. Até chegar nesse ponto, é preciso acompanhar uma trama que caminha de forma irregular, dividida sem sutileza por passagens que oscilam entre os altos de sequências que mantém a trama em movimento e baixos que escancaram o ponto fraco de seu criador (diálogos expositivos são utilizados para desenvolverem os personagens).

No universo foto jornalístico, tudo o que importa, afinal, é a imagem e não se deve medir esforços para consegui-la. Os meios para tal, são irrelevantes e é aí onde mora o perigo. Em tempos de eleição presidencial nos Estados Unidos, Guerra Civil chega para propor uma reflexão ao único lado que realmente existe, mas lembremos que aqui no Brasil as coisas não andam muito diferentes...


NOTA 8

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