Sangrento e tórrido, 'Love Lies Bleeding' reafirma visão arrojada de Rose Glass
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Sangrento e tórrido, 'Love Lies Bleeding' reafirma visão arrojada de Rose Glass


A julgar pelo pôster, pelo marketing e pela presença de Kristen Stewart, Love Lies Bleeding – O Amor Sangra pode induzir o público ao erro de encará-lo como mais um romance queer potencialmente trágico a desembocar no circuito alternativo. Bastam poucos minutos para a diretora Rose Glass simplesmente obliterar essa visão pré-concebida e justificar toda a repercussão que este seu segundo longa-metragem gerou no Festival de Sundance em Janeiro.


O roteiro escrito por Glass em parceria com Weronika Tofilska (da minissérie Bebê Rena, recém-lançada na Netflix) mostra sua força logo após os créditos iniciais (sobrepostos em imagens de aparelhos de musculação e marombeiros de plantão), atirando o espectador no cotidiano de Lou (Stewart), uma mal-humorada gerente de academia que entra em cena da forma mais inglória possível ao desentupir um vaso sanitário. Sem se preocupar com a cortesia ao interagir com seus pares, ela resiste aos flertes de Daisy (Anna Baryshnikov, da finada série Dickinson) ao mesmo tempo em que parece contar os minutos para voltar para casa.

Tudo muda quando a fisiculturista Jackie (Katy O’Brian, da série The Mandalorian) chega à cidade à procura de um lar provisório e um emprego para sustentar o seu modesto estilo de vida. Ela está só de passagem, aguardando o momento de partir para Las Vegas a fim de disputar uma sonhada competição nos moldes do Mr. Olympia. Acontece que ela precisará de um lugar não apenas para dormir, mas também para treinar e é aí que Lou acaba entrando em sua vida. A impressão imediata é a de que somente Jackie poderia chamar a atenção da introvertida Lou e somente esta última poderia despertar sentimentos tão intensos na primeira, uma andarilha solitária.

O primeiro ato realmente é marcado pelo romance incandescente entre as duas mulheres, com direito a tórridas sequências que exalam sensualidade sem recair no vulgar. Glass não é o tipo de realizadora que costuma perder tempo, ilustrando a aproximação gradual entre Lou e Jackie da mesma forma em que dá pistas ao espectador da época em que se passa a história, como ao mostrar noticiários cobrindo a queda do muro de Berlim ou através dos figurinos e penteados extravagantes ostentados pelos personagens. Os anos 80 não foram especialmente gentis com a comunidade LGBTQIA+ e só essa contextualização já seria suficiente para aumentar a tensão, que culmina num embate físico entre Jackie e um homem que busca desqualificar a orientação sexual de Lou.

Como se isso não bastasse, a narrativa ganha contornos mais enervantes quando entra em cena JJ (Dave Franco, apropriadamente repugnante), marido abusivo da irmã de Lou. Todos parecem saber das agressões sofridas pela mulher, mas ninguém se propõe a intervir, o que enfurece Lou, ainda mais por saber que nada parece abalar o relacionamento entre eles. Esse é um detalhe que pode passar despercebido, pois se trata do incidente incitante do roteiro, mas é também muito mais do que isso. Afinal, Lou não entende que é o Amor que prende a irmã a JJ, por mais que ele a maltrate. Um amor que pode ser debatido por quem está de fora, mas inquestionável na cabeça daquela mulher.

Glass e Tofilska querem mostrar que o Amor pode ser uma droga ainda mais do que os esteroides que modificam o corpo de Jackie ao longo da projeção. E se há alguma dúvida a respeito disso, ela se esvai à medida que o namoro entre as protagonistas passa por uma série de provações, a maior delas sendo um sangrento acontecimento, filmado impiedosamente (com direito a violência gráfica). Lou é uma mulher introspectiva que internaliza sentimentos como frustração, rancor e até raiva, diferente de Jackie, tão extrovertida que se mostra incapaz de resistir à impulsividade. Essas contradições justificam o magnetismo entre as personagens, mas também legitimam os desdobramentos dessa simbiose tão intensa.

Se o primeiro terço é dedicado a unir Jackie e Lou, os dois últimos parecem determinados a separarem-nas, ou ao menos testar a validade do que sentem uma pela outra. E o grande responsável por abalar as estruturas do par é justamente Lou Sr. (Ed Harris, excepcional), pai de Lou e que se mostra a criatura mais fascinante da história. Isso porque assim como se dispõe a ajudar num momento de dificuldade, também demonstra ser perigoso ao revelar suas verdadeiras intenções. Nesse ponto, sua relação com a filha ganha contornos complexos. Ela reprova as atitudes do pai e tem motivos para tal (um flashback revela um trauma chocante), mas até as piores atitudes (no presente) são tomadas para protegê-la.

Não obstante toda a complexidade que rege os relacionamentos de Love Lies Bleeding, Rose Glass ainda as ilustre através de detalhes técnicos. Note, por exemplo, como o carro de Lou é carregado de um azul que se mostra oposto ao vermelho que cobre o rosto do pai em momentos-chave. Aliás, o embate entre as moças e o velho Lou é também o espelhamento de outra discussão, dessa vez envolvendo a masculinidade tóxica, ainda mais na época na qual a história se desenvolve (“é fácil ter confiança empunhando um pedaço de metal”, diz Jackie ao pai da amada em determinado instante).

Por mais que Lou esconda seus problemas, estes acabam se manifestando dentro da academia, que parece funcionar como uma extensão psicológica da moça. Assim, vasos podem até entupir, mas é ela mesma quem se apresenta para resolver a situação, mesmo que os métodos não sejam os mais sofisticados (algo que se reflete na sua vida). Já a máquina de refrigerante, com defeito há tempos, não vale o esforço da sempre cansada Lou. O que está quebrado, permanecerá quebrado.

Por outro lado, a habilidade de Rose Glass em economizar tempo, às vezes se transforma em mera ansiedade, o que prejudica o desenrolar da narrativa, especialmente o namoro central, por exemplo. Repare como a briga que acontece no interior de um carro evolui de forma tão rápida que mal conseguimos acompanhar. Nessa mesma sequência, em questão de segundos, alguém grita, se desculpa e logo se abre, pulando etapas sem oferecer um respiro, gerando uma passagem de rara artificialidade.

Em contrapartida, a fotografia de Ben Fordesman (de Saint Maud, debute de Glass) abusa da iluminação artificial, criando planos que se beneficiam da ambientação quase sempre noturna. Já o compositor Clint Mansell, traz sua experiência como colaborador de Darren Aronofsky e emula o trabalho de Cliff Martinez no eletrizante Drive, sublinhando a natureza taciturna da história através do uso de sintetizadores e até de teremim, sendo este último o principal elemento que sugere a estranheza do que está por vir.

Falando nisso (sem incorrer em spoilers), é impossível falar de Love Lies Bleeding - O Amor Sangra sem mencionar seu affair com o realismo fantástico, construído com cuidado ao longo da narrativa e que parece uma fusão do Cinema Onírico de Lynch com o body horror de Cronenberg. A reação de um personagem pode ser utilizada como argumento numa interpretação mais literal de um evento do terceiro ato, mas finco meus pés na ideia de que extrapola-se um dos temas do filme (a musculação como ato de modificar/aprimorar/esculpir o corpo), por isso determinada figura surge da forma como a própria se vê (ou intenciona ser vista). Digamos que as frases de efeito presentes nas academias nunca foram tão bem contempladas...

Só espero que a discussão em torno do filme não se resuma a esse trecho, pois oferece farto material não apenas para rechear conversas cinéfilas, mas também para estabelecer Rose Glass como uma autora de visão arrojada e cujo trabalho merece ser acompanhado daqui para frente.


NOTA 8,5


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