top of page

'Lobisomem' tangencia clássico ao narrar pesadelo familiar

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Houve uma época em que a influência da Marvel chegou forte à Universal, quando o centenário estúdio passou a cobiçar o universo compartilhado da Casa das Ideias. Há anos buscando formas de reaproveitar seus monstros clássicos, uniu-se o útil ao agradável, nascendo o chamado Dark Universe (Universo Sombrio, em tradução literal), espécie de franquia nos moldes dos Vingadores, mas com personagens como Lobisomem, Drácula, Frankenstein e Múmia no lugar dos super-heróis. A Múmia, aliás, foi o escolhido para começar a concretização desse planejamento, mas o longa-metragem que trazia Tom Cruise mais perdido que cego em tiroteio e Russell Crowe fazendo uma ponta como Dr. Jekyll antes de ganhar seu próprio filme, foi um fracasso tão grande de público e crítica que assustou os executivos (mais do que seus personagens) e acabou abandonado. Só restaram as lembranças, o Framboesa de Ouro e as especulações sobre o que poderia ter sido. Longe de uma terra arrasada, essa ideia chegou a dar bons frutos independentes, como o Renfield com Nicolas Cage e O Homem Invisível de Leigh Whannell.

Whannell, que começou a carreira como roteirista em Jogos Mortais (2004), despontou no cenário independente com o engenhoso filme de ação Upgrade (2018), até ser chamado por Jason Blum para assumir a reimaginação de um desses monstros clássicos da Universal. Dono da Blumhouse, celeiro do Terror conhecido por fazer dinheiro com produções de baixo orçamento, Blum firmou parceria com a Universal e jogou O Homem Invisível (2020) no colo de Whannell. Protagonizado por uma inspiradíssima Elisabeth Moss, o longa-metragem fez sucesso ao não apenas modernizar a história, mas por trocar os sustos fáceis e monetizáveis por um discurso mais conectado às mazelas contemporâneas. O retrato de um relacionamento abusivo com fortes doses de violência doméstica teve apenas como pano de fundo a questão fantástica, pois o tal “Homem Invisível” do título conquistou essa alcunha de uma forma muito mais elaborada do que simplesmente aterrorizante.

E foi essa abordagem que levou tanto estúdio, como produtora, a repetirem a dose, desta vez levando o Lobisomem até o cineasta australiano. Assim como O Médico e o Monstro de Rouben Mamoulian, o já citado licantropo do filme de George Waggner, ambos lançados respectivamente nas décadas de 30 e 40, tinham como base uma discussão sobre dualidades. Bem e Mal, Razão e Emoção, Humanidade e Bestialidade. Whannell, inteligentemente, foge um pouco desse espectro para apresentar uma versão mais pé no chão. Tanto que ao invés de construir uma história de origem ou se apoiar no detalhamento da mitologia, o cineasta, que co-escreve o roteiro ao lado da esposa Corbett Tuck, opta por um recorte mais limitado. Essa limitação, claro, leva em consideração também o aspecto orçamentário, encaixando-se na diretriz financeiramente enxuta da produtora.

Curiosamente, apesar de retratar em detalhes a transformação do protagonista no personagem-título, esta leva praticamente dois atos para se completar, bebendo da fonte do body horror de David Cronenberg . E mesmo que isso possa parecer uma eternidade aos olhos cada vez mais ansiosos do espectador moderno, significa poucas horas na vida de Blake (Christopher Abbott), o pai de família que busca um tempo de qualidade ao lado da esposa Charlotte (Julie Garner) e da filha Ginger (Matilda Firth) enquanto decide ir até a antiga casa em que vivia para buscar as coisas do falecido pai. Essa madrugada infernal corresponde ao recheio suculento da obra, mas não devemos menosprezar o sabor da entrada.

Afinal, o filme usa os primeiros minutos de projeção para situar o espectador numa realidade onde o lobisomem pode ser mais do que uma lenda, conforme as informações dispostas numa cartela que insinua a conexão entre um trilheiro desaparecido nas florestas isoladas do Oregon ao mito indígena do “cara de lobo”. É quando conhecemos Blake, ainda criança, e sua rotina militar ao lado do rígido pai, um caçador que logo se revela, também, obcecado pelo lobisomem.

Os fãs da licantropia, vale alertar, poderão ficar severamente decepcionados com a intenção do roteiro em simplificar e até redefinir a criatura, aqui enquadrada nas demandas modernas. Não há menções a maldições ou heranças diabólicas, pois a metamorfose é encarada como uma doença, que por sua vez, pode ser interpretada por um viés mais profundo, visto que o roteiro dá brecha para discussões maiores. Whannel, lembre-se, utilizou da mesma estratégia para dar credibilidade a O Homem Invisível e não é a primeira vez que vemos Christopher Abbott absorvendo questionamentos acerca da masculinidade em uma performance. Se no bom Bring Them Down (2024), o ator estadunidense é a personificação do argumento sobre uma cidade infectada pela virilidade tóxica, em Lobisomem, o vemos como receptáculo de uma discussão a respeito da domesticação do homem, além do fato de seu Blake ser alguém com sentimentos reprimidos prontos para serem expurgados.

É interessante como a transformação vagarosa de Blake estabelece um paralelo com a própria ressignificação de Charlotte enquanto mulher e mãe. A dinâmica familiar se inverte e coloca a antes autônoma e distante personagem de Julia Garner (ainda à sombra da Ruth de Ozark) numa posição de dependência revelada pela vulnerabilidade que a mesma não percebia possuir. E o clímax lhe impõe uma dura, mas definitiva provação, da mesma forma em que sacramenta a troca de posição com Blake. É um atestado da constituição familiar pós-moderna, com a mulher dispondo de recursos e reivindicando seu lugar no mundo autossuficiente. No meio desse fogo cruzado subtextual, sobra a Matilda Firth o amor infantil como signo, e o espelhamento da sequência no abrigo de caça não é arbitrário, assim como a brincadeira de ler mentes passa longe de ser apenas um artifício meloso.

Se dramaticamente o roteiro desenvolve sem reservas a sua capilaridade (com o perdão do trocadilho), no âmbito do terror, Lobisomem é mais modesto. Leigh Whannell, sabe provocar tensão e alimentar a imaginação do espectador à base da escuridão. Ele dirige bem o nosso olhar, mostrando apenas o que precisamos ver e não necessariamente o que queremos; o mesmo se aplica ao interesse pelo exterior da casa, que vira ponto de interesse dos personagens quando a trama começa a pedir por variações, como um carro manual clamando pela troca de marcha. Mas as pausas alongadas, o som proeminente e os jump scares não são um diferencial. E pior é a utilização de convenções para acentuar o desconforto (a picape que demora a pegar). Aliás, haja suspensão de descrença para o veículo! (pneus imunes ao tempo e gasolina especial são apenas a ponta do iceberg).

O aproveitamento da fisicalidade da criatura é outra insuficiência, pois temos acesso apenas a lampejos do que pode ser ao invés de nos aterrorizarmos com o que é de fato (e aqui cabe outra concessão, numa referência a um célebre momento de Jogos Mortais). Em contrapartida, soma-se pontos importantes com a supracitada transformação paulatina, onde o verdadeiro horror provêm da deterioração de um pilar familiar, justamente o autoproclamado protetor-mor.

Acomodando-se no filão de produções gravadas numa casa, mas sem a sagacidade de Evil Dead (1981) ou o rendimento de Invocação do Mal (2013), por exemplo, Lobisomem é o tipo de filme de terror fadado a impressões mistas, pois enquanto escolhe apenas tangenciar o clássico licantrópico, contenta-se com o básico do gênero, torcendo para que o drama compense.


NOTA 6

bottom of page
google.com, pub-9093057257140216, DIRECT, f08c47fec0942fa0