"Aquaman" abraça a cafonice em aventura influenciada pela Marvel
Em seu início nos quadrinhos, Aquaman jamais chegou a estar entre os super-heróis mais populares. E mesmo que sua fama ainda não fosse ruim (afinal, seus contos eram sérios), sua reputação ficou seriamente abalada após suas participações no desenho Super Amigos, exibido durante a década de 70. Sem saber aproveitar adequadamente os superpoderes do herói atlante, a série o submetia a momentos inusitados que geralmente eram precedidos pela necessidade de ‘ver se os peixes sabiam de alguma coisa’ (ou algo parecido). Para piorar, Aquaman virou um motivo tão grande de chacota que até mesmo o Cartoon Network passou a incorporá-lo em sua programação com pequenas inserções cômicas.
Assim, anos se passaram até que o herói finalmente ganhasse histórias sérias nos quadrinhos, o que motivou uma série de mudanças. E ainda que renda algumas brincadeiras, o personagem ganha um filme que parece, de uma vez por todas, dar um fim em sua famigerada faceta anedótica. O fato é que Jason Momoa tem uma boa parcela da responsabilidade dessa bem-vinda volta por cima do personagem: trazendo um ar de bad boy graças ao visual desleixado e à postura rebelde, Momoa soube fazer de Arthur Curry alguém com quem não iríamos ousar fazer chacota. E se antes (lembre-se de Liga da Justiça) temíamos levar uma bela bordoada, agora, neste seu primeiro filme solo, percebemos que Curry é simplesmente legal demais (ou badass), o que é brilhantemente ilustrado num momento no qual o atlante é interrompido para atender um pedido de selfie por um fã.
Escrito por David Leslie-Johnson (Invocação do Mal 2) e Will Beall (Caça aos Gângsteres), o roteiro constrói uma narrativa nada original que utiliza uma série de clichês para contar a origem de Aquaman. Portanto, se você sentir alguma semelhança com Thor ou Pantera Negra, por exemplo, saiba que não é mera coincidência. Arthur é o mestiço chamado pela princesa Mera (Amber Heard) para impedir que Orm (Patrick Wilson) declare guerra ao povo da superfície. O problema é que Orm não apenas é irmão de Arthur como está prestes a conquistar o título de Mestre dos Mares, o que lhe possibilitaria convocar vários exércitos subaquáticos. Para derrotá-lo, a única chance é encontrar o lendário Tridente de Atlan que confere ao seu merecedor (olha a referência a Thor) poderes inimagináveis e a alcunha de Rei. Mas teria Arthur as qualificações necessárias para ser um líder? Essa é a pergunta que o script insiste em fazer durante boa parte da narrativa e que é, competentemente, respondida através de um arco dramático que pega emprestado elementos da clássica Jornada do Herói de Joseph Campbell. “Mas se a história é genérica, como Aquaman poderia resultar num bom filme?” você deve estar se perguntando.
Nesse caso, devo lembrar que um clichê só se torna um clichê graças à sua eficiência, o que, consequentemente, o faz ser repetido em diversas obras. Aquaman possui uma história que passa longe de ser inédita, mas que é contada com desenvoltura e, claro, eficácia. O diretor James Wan, que depois de se estabelecer em Hollywood com a lucrativa franquia Invocação do Mal, fez de Velozes e Furiosos 7 sua porta de entrada para o mundo dos blockbusters, dá a Aquaman uma identidade visual pouco vista no claudicante universo DC.
Passando pela fotografia vibrante até chegar ao design de produção, tudo em Aquaman é multicolorido. Os diversos povos vistos ao longo da trama são ricos em personalidade, distinguindo-se entre si através de elementos inspirados e que exalam inspiração. Note, por exemplo, como os povos mais primitivos assemelham-se fisicamente a criaturas marinhas, utilizando animais como meios de transporte e armas brancas como mecanismos de defesa, ao passo que Atlântida ostenta um poder de fogo baseado em disparadores de lasers e naves sofisticadas. Além disso, conceber essas naves no formato de camarões, arraias e outros animais marinhos só traz coerência ao universo do projeto.
O figurino, ainda que sem surpreender, segue o padrão estabelecido na direção de arte e confere traços de águas-vivas ao vestido da Princesa Mera, por exemplo, e enche de dourado a armadura do Rei Atlan, enquanto as vestimentas mais básicas são sempre marcadas por uma textura semelhante a escamas. Enquanto isso, o design de som confere um realismo cirúrgico ao aplicar efeitos de eco aos diálogos trocados dentro da água, numa preocupação estética que se reflete no orgânico tom que faz com que os cabelos reajam à movimentação na água. E ainda bem que tenham corrigido os problemas da ponta de Aquaman em Batman Vs. Superman, quando era possível notar Jason Momoa prendendo a respiração (agora, os atores realmente aparentam estar no fundo do oceano, movendo-se lentamente e, até mesmo, soltando bolhas ao tossir).
E se tecnicamente Aquaman é irrepreensível, o elenco também não faz feio. Se Jason Momoa exala carisma e vigor físico como o herói-título, Patrick Wilson (Invocação do Mal 2) compõe o vilão Orm como um verdadeiro personagem de quadrinhos, subindo o tom numa caracterização adequadamente exagerada, surgindo como o único do elenco verdadeiramente em sintonia com seu material de origem, enquanto Yahya Abdul-Mateen II (do bom Limites) mostra potencial como o vingativo Arraia Negra, exibindo um físico imponente e uma bem-vinda tendência caricatural.
Infelizmente, porém, Amber Heard (A Garota Dinamarquesa) pouco acrescenta à história, fazendo de Mera pouco mais do que um simples interesse romântico, mesmo possuindo mais tempo de tela do que o sempre eficaz Willem Dafoe (Assassinato no Expresso do Oriente), que é desperdiçado como Vulko além de aparecer com uma estranha maquiagem digital que ao invés de rejuvenescê-lo, o transforma num avatar artificial. Já Nicole Kidman (excelente no vindouro O Peso do Passado), passa credibilidade à Rainha Atlanna, ganhando pontos com a energia demonstrada na ótima sequência de ação que inicia a projeção.
E já que mencionei a ação, James Wan e o montador Kirk Morri (parceiro habitual de Wan) conferem agilidade e coesão às (várias) sequências de ação do filme, com destaque para a movimentação da câmera que, inquieta, acompanha os movimentos dos lutadores, mas também é capaz de saltar de um confronto a outro através de sofisticadas tomadas como as vistas na sequência da Sicília, onde acompanhamos Aquaman e Mera em confrontos separados, mas observados sem cortes pela lente raivosa de Wan, que também exibe uma notável preocupação com a geografia das cenas, sempre permitindo que o espectador entenda o que acontece na tela.
Sem perder a atenção do público por um segundo sequer, Aquaman é beneficiado pela riqueza de locações, o que permite à trama saltar de um lugar ao outro e dar a palpável sensação de movimento contínuo, exibindo sempre características distintas e acompanhadas pela trilha tresloucada de Rupert Gregson-Williams (Mulher-Maravilha) que abandona a homogeneidade para abraçar o frenesi sonoro, saltando entre tons completamente díspares e mesclando instrumentos e sintetizadores, concebendo uma experiência musical irregular, mas com bons momentos que variam entre melodias dançantes e acordes solenes (e não deixe de reparar na combinação de sintetizadores e guitarras elétricas).
Abusando de conversas que são interrompidas subitamente por explosões, Aquaman também não nega sua inspiração kitsch, que confere um ar anos 90 à produção. Isso não chega a ser um problema a partir do momento em que percebemos que Aquaman abraça o ridículo (humanos montam em tubarões e o protagonista fala com peixes). Mas também somos obrigados a testemunhar apresentações infantis como “pode me chamar de… [close-up dramático] Mestre dos Oceanos!” ou “eu sou… [pausa dramática] o ARRAIA NEGRA!”, isso para não mencionar a cafona montagem do dito cujo confeccionando sua armadura ao som de Depeche Mode. Essa sequência só escancara sua implausibilidade, com o Arraia (sim, o roteiro não dá outro nome ao personagem), encontrando tempo até mesmo para PINTAR seu traje enquanto Mera e Arthur andam pelo deserto. E dizer que ele sequer faz um treinamento antes de atacá-los é um mero detalhe.
Dinâmico e leve, Aquaman não se envergonha de suas origens, mostrando sua faceta kitsch através de uma história divertida sobre um personagem que não encara seus superpoderes como um fardo. Ao contrário de Bruce Wayne e Clark Kent, Arthur Curry está muito bem resolvido com seus deveres como super-herói. Depois de Mulher-Maravilha e Aquaman, ainda há quem acredite que a DC só sabe produzir filmes sombrios?!
Obs: Há uma cena adicional durante os créditos.
NOTA 7
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