"As Marvels" escreve mais um capítulo na interminável crise criativa da Marvel
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"As Marvels" escreve mais um capítulo na interminável crise criativa da Marvel


Quando a Marvel dava seus primeiros passos na TV, muitos fãs demonstravam orgulho da possibilidade de irem aos cinemas preparados para pegarem todas as referências às séries do estúdio. Afinal, falava-se na época que aqueles que não dispusessem de tempo ou vontade de acompanhar todas as minúcias do tal Universo Marvel, ficariam perdidos quando fossem assistir casualmente algum lançamento nos cinemas. Lembro de reagir com incredulidade, pois a Marvel não cresceu às custas somente de seus fãs. Pois é interessante notar como As Marvels, um produto que reúne elementos tanto do Cinema, como da Televisão, gasta tanto tempo explicando praticamente toda a trajetória de suas personagens logo nos primeiros minutos. Em outras palavras, enquanto os autoproclamados “nerds” diziam que seria obrigatório assistir a todos os projetos multiplataforma da Marvel para seguir apto a acompanhar o MCU, As Marvels reage com um sonoro "Tem certeza?" Bom, quem quiser se aprofundar na mitologia dos personagens e eventos para poder suspirar ou gritar diante de alguma referência rebuscada, a resposta talvez seja o esperado “sim”. Mas essa expansão, que borrou a linha tênue entre ambição e ganância, trouxe um efeito colateral que parece finalmente estar afetando toda a estrutura antes estabilizada do Marvel Studios, agora em colapso.

Se na década passada era possível encontrar multidões desesperadas para não ficarem de fora dos filmes-eventos da chamada “Casa das Ideias” (faltar pré-estreias aumentaria o risco de receber spoilers, afinal), hoje, um domingo à tarde, foi absolutamente estarrecedor constatar que o número de espectadores na minha sessão não alcançou os dois dígitos, mesmo me incluindo na conta. É o preço a se pagar por banalizar seu produto mais valioso. E as reações efusivas que ouvi ao fundo denunciavam o cliente-médio da Marvel. O público casual pode ter torcido o nariz para a produção, mas os “marvetes” (ou “marveletes”?) permanecem fiéis não apenas à empresa, mas também aos seus velhos hábitos.

Como já antecipei no primeiro parágrafo, As Marvels não demora para se entregar a uma extensa sequência que explica o essencial a respeito de Kamala Khan (Iman Vellani), estrela da minissérie Ms. Marvel e que faz uma espécie de retrospectiva de sua trajetória através de uma estranhíssima montagem animada (para simular os desenhos da moça). Logo depois, é a vez da Carol Danvers de Brie Larson participar de sua própria versão do famigerado “anteriormente em Capitã Marvel”, refrescando a memória daqueles que contribuíram para a bilheteria bilionária da aventura anterior e ambientando os marinheiros de primeira viagem. O próximo da fila é Samuel L. Jackson, um dos decanos da franquia, mas que já demonstra estar completamente deslocado. Aliás, nem a Marvel parece saber o que fazer com o homem responsável por reunir os Vingadores. A decadência de Nick Fury, agora um mero alívio cômico, é um reflexo do desgaste da Fórmula Marvel em si.

Reclamar do excesso de tela verde, que expõe a precariedade dos efeitos visuais, é chover no molhado. O curioso, no entanto, é que nem mesmo o exorbitante orçamento, que ultrapassa inacreditáveis 274 milhões de dólares não foi suficiente para contornar um problema que persiste há décadas. Pobres técnicos de VFX, que seguem tentando regulamentar o setor para se libertarem da rotina abusiva de trabalho que recentemente foi denunciada e provocou a demissão de Victoria Alonso, chefe da divisão na Marvel. Pior ainda é constatar o terrível trabalho de montagem e que, por incrível que pareça, passa longe de cair na conta dos profissionais Catrin Hedström e Evan Schiff. Para quem não sabe, As Marvels passou por um intenso processo de refilmagens, alimentando rumores de intervenção por parte dos produtores. Isso talvez explique o desequilíbrio que pontua toda a narrativa, que salta do humor ao suposto drama num ritmo tremendamente irregular. Sequências desconexas como a bagunça generalizada que marca uma homenagem a Cats ou as famigeradas tentativas de humor infantil (muitas através de Fury), são apenas a ponta do iceberg. Coincidentemente, problemas semelhantes afetaram Thor – O Mundo Sombrio, primeira continuação da franquia estrelada por Chris Hemsworth e cujo resultado talvez não queira ser lembrado por Kevin Feige, líder criativo da Marvel.

O que ele de fato deve recordar com carinho é da época em que era fácil de empurrar histórias medíocres com a promessa de um futuro brilhante para seu universo compartilhado, algo que tenta repetir ao investir numa sequência pós-créditos que escancara o desespero de um estúdio para recuperar o interesse perdido ao longo dos anos. A crise criativa é tamanha, que até a ressurreição do Homem de Ferro é cogitada para corrigir os rumos. Mas será que o retorno de Robert Downey Jr., que se tornou um titã de Hollywood após emprestar seu carisma para erguer o Universo Cinematográfico Marvel do zero, é o bastante para mascarar a falta de inspiração dos roteiristas?

Os diálogos sofríveis (“enquanto eu estava blipada”), expositivos (“você sabe que ela quer roubar recursos naturais”) e que explicam o que já estamos vendo (“o bracelete está absorvendo energia!”, “acho que nós trocamos de lugar quando usamos nossos poderes”) empalidecem diante do desenvolvimento preguiçoso da vilã vivida por Zawe Ashton (noiva de Tom Hiddleston, o Loki), concorrente de peso ao posto de antagonista mais genérica da história do MCU. Falando em genérico, assim como houve um tempo em que a nanotecnologia servia como desculpa básica para conveniências narrativas, dessa vez é o termo “quântico” quem ganhará o título de queridinho dos roteiristas Marvel. Essa mediocridade acaba afetando até os figurinos de Lindsay Pugh, que opta pelo óbvio ao vestir os vilões de preto da cabeça aos pés e pelas cores fortes ao compor os trajes de Kamala Khan, refletindo sua personalidade alegre.

Khan, por sua vez, é vivida pela paquistanesa Iman Vellani com uma empolgação juvenil que passa longe de ser inédita, mas que acaba conquistando o espectador sem muitas dificuldades. Já Brie Larson demonstra um desinteresse perturbador ao transformar Carol Danvers numa personagem de muita pose para pouca substância. Por fim, a talentosa Teyonah Parris tinha tudo para roubar a cena como a combativa Monica Rambeau, mas essa é uma função que acaba, obviamente, ficando com a gatinha Goose. Seguindo uma longa tradição da Disney (dona da Marvel), a mascote ganha momentos suficientes para capturar o coração do espectador e impulsionar a venda de bichos de pelúcia. Da mesma forma, a máxima das continuações (repetir o que deu certo e aumentar a escala) é seguida à risca, com uma gataria ganhando sua própria oportunidade de brilhar (a supracitada homenagem a Cats).

Lá no fundo, porém, há uma boa história pronta para ser revelada e os realizadores não podem reclamar de falta de conteúdo. A subtrama envolvendo os Skrulls por exemplo, povo extraterrestre que acaba sendo expulso de sua própria terra, poderia muito bem ser trabalhada como uma alegoria à contemporânea Crise dos Refugiados ou até mesmo a algumas guerras travadas por aí. O passado que atormenta a Capitã Marvel, também poderia ser melhor explorada ao invés de servir apenas para estabelecer algumas ligações entre personagens. Mas como exigir isso de quem esquece até mesmo da existência do ajudante da vilã (repare como o sujeito de olhos amarelados simplesmente desaparece da história)? E o que dizer da milésima vez em que um filme da Marvel coloca um grupo de personagens conversando ao redor de uma mesa holográfica? Com o intuito de manter o texto livre de spoiler, nem mencionarei a bizarra homenagem aos grandes musicais da Disney...

A verdade é que o estúdio responsável pelo segundo maior sucesso de bilheteria da história do Cinema vai precisar de mais do que uma cena pós-créditos, um punhado de gatos e duas boas (mas rápidas) sequências de ação para estancar a sangria criativa que vai provocando o afastamento cada vez maior do público.


* Observação: Há uma sequência pós-créditos


NOTA 4

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