Ferrari se sustenta a partir da colisão entre adrenalina e melodrama
Não importa a época, a Itália sempre servirá como um cenário deslumbrante para o Cinema hollywoodiano, por mais que o neorrealismo tenha se dedicado a contrariar essa ideia. O recorte da vez engloba a década de 50, mas a história não se concentra num homem qualquer e, sim, no empresário automobilístico Enzo, cujo sobrenome tornou-se um emblema tão forte a ponto de ser utilizado como título de várias produções, incluindo esta dirigida pelo norte-americano Michael Mann.
Mas o roteiro do finado Troy Kennedy Martin, adaptado da biografia assinada pelo jornalista Brock Yates, não perpassa os anos glamorosos em que a marca Ferrari se estabeleceu como uma das mais poderosas do mundo, como deixa claro logo após a rápida sequência em preto e branco que mostra Enzo pilotando carros de corrida anos antes de decidir fabricá-los. O que se segue é uma Ferrari que está por um fio, contaminada por uma crise econômica tão aguda quanto a que se instaurou na vida de seus próprios fundadores. Afinal, Enzo e sua esposa Laura dividem a propriedade da Ferrari e decidem apostar todas as suas fichas numa tradicional corrida de rua na esperança de alavancarem as vendas.
O casamento entre eles está em ruínas, uma situação que se tornou irreversível após a morte do rebento Dino, aos 24 anos, em virtude de uma distrofia muscular. Como se isso não bastasse, Enzo e Laura lidaram com o luto de formas distintas: ela sucumbiu à depressão, sustentando um visual desgrenhado que apenas reflete o amargor que rege sua nova vida, ao passo que ele foi procurar alento em outro relacionamento, gerando com a amante Lina Lardi um novo filho. Enquanto mantém sua segunda família escondida numa propriedade afastada, Enzo tenta dialogar com a esposa volátil para manter a Ferrari saudável como empresa.
Sim, o paralelo é construído com esse grau de obviedade, mas não impede Adam Driver e Penélope Cruz, intérpretes talentosos, de explorarem as nuances de seus personagens. Não faz muito tempo que o californiano, coincidentemente, encarnou uma celebridade italiana, no caso, o personagem-título do exótico e fracassado Casa Gucci (2021), mas para Enzo Ferrari ele traz uma sobriedade que ajuda a compô-lo como um homem inquestionavelmente astuto. E o mais intrigante é que o personagem não precisa ser desonesto para alcançar seus objetivos, sendo admirável vê-lo negar-se a mentir para Laura quando algo importante vem à tona. Ela, da mesma forma, é vivida por Cruz com a eficácia de sempre, ocasionalmente relembrando a Maria Elena de Vicky Cristina Barcelona (2008), outra força da natureza que se vê num relacionamento moribundo.
Pela caracterização sobressaltada e as ótimas sequências compartilhadas com Driver, é natural que a espanhola tenha sido apontada como uma provável candidata ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (seu segundo, após vencer pelo supracitado longa de Woody Allen em 2009), algo que acabou não se concretizando e também deve ser encarado com normalidade. Pois a trama que envolve o casal é costurada sem muito cuidado, deixando transparecer sua finalidade como alicerce emocional da obra sempre que o roteirista Troy Kennedy Martin (Uma Saída de Mestre) resolve navegar pelos mares dramáticos, invariavelmente aportando no melodrama.
Para equilibrar a situação, cabe a Michael Mann fazer o que sabe melhor e mesmo que Ferrari não seja o ponto alto de uma carreira famosa por obras viscerais e bem acabadas, há momentos suficientes para que os fãs do cineasta sintam-se plenamente contemplados. Como as sequências de corrida, por exemplo, quando o diretor de fotografia Erik Messerschmidt (O Assassino) coloca o espectador dentro do cockpit e o conduz pelas sinuosas ruas italianas, com destaque para a passagem ambientada numa montanha com dois carros disputando posição.
O design de som, acurado na maior parte do tempo, remete curiosamente a Ford vs. Ferrari (2019) obra quase homônima que faturou o Oscar justamente por sua qualidade sonora. Aliás, o filme de Mann pode facilmente render uma sessão dupla com o de James Mangold, vale destacar. Enquanto o filme de 2019 se beneficiava da química entre Matt Damon e Christian Bale, Ferrari lucra com a acertada escalação do brasileiro Gabriel Leone (Eduardo e Mônica), debutando em Hollywood na pele do piloto espanhol Alfonso de Portago. Carismático, Leone abusa do sorriso fácil para compor a faceta conquistadora do automobilista, mas se sai igualmente bem ao retratar sua personalidade competidora.
No cômputo geral, Ferrari pode até ser encarado como um filme menor de Michael Mann, equilibrando-se com dificuldades entre o melodrama familiar de Enzo e a adrenalina capitaneada por suas Ferraris, mas isso passa longe de ser ruim quando integrado a uma filmografia que inclui obras como Fogo Contra Fogo (1995), O Informante (1999) e Colateral (2004).
NOTA 7
Parabéns pela crítica