Festival do Rio 2018 | Dia 7
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2018 | Dia 7

Completando uma semana de Festival, o dia começou com um poético recorte da vida do pintor holandês Vincent Van Gogh, interpretado por Willem Dafoe (flertando com uma indicação ao Oscar). Depois White Boy Rick, que desmorona pela fraca performance de seu inexperiente protagonista e um roteiro pouco inspirado. Por fim, uma tocante história (vencedora da Palma de Ouro) sobre o que define uma família.


No Portal da Eternidade (At Eternity’s Gate) | França


O fato de ter seu talento questionado durante toda sua vida, prova que Vincent Van Gogh foi um artista a frente de seu tempo. Até mesmo grandes nomes como o amigo e também pintor Paul Gauguin criticavam seu estilo, alegando que o excesso de tinta transformava suas pinturas em quase esculturas, tamanho o relevo do traço. Também, pudera, Van Gogh usava a pintura não como uma forma de comunicação ou pela simples vontade de expressar sua arte. Pintar lhe oferecia uma válvula de escape, como se durante uma pincelada e outra, ele finalmente encontrasse paz. A esquizofrenia era outro fator agravante, dificultando sua já conturbada vida.


Justificando o título através de uma poética frase do pintor “quando observo uma planície, a enxergo como se fosse um vislumbre da eternidade”, a produção automaticamente decifra o significado das telas (ou portais) aos olhos de Van Gogh, que inicia a história viajando ao sul da França, local que o conecta de vez com sua maior musa: a natureza.


No filme de Julian Schnabel (O Escafandro e a Borboleta), a história de Van Gogh é um mero artifício para revelar o homem por trás do gênio. Adotando uma estética crua, a câmera de Schnabel acompanha o protagonista com liberdade total, ao ponto de Schnabel e o diretor de fotografia Benoît Delhomme dispensarem qualquer amarra técnica. Com isso, as lentes passeiam pelos campos seguindo Van Gogh através de uma imagem trêmula, em virtude da câmera na mão (investindo, inclusive em planos subjetivos). Aqui, assim como o caráter pessoal, quanto mais natural, melhor.


A estética naturalista favorece não apenas o cenário da narrativa como a relação de Van Gogh com a natureza, que se transforma na maior musa do artista. Enquanto nos aprofundamos na mente dele, Van Gogh se torna apenas Vincent, e os momentos em que podemos vê-lo pintando são captados com extremo cuidado por Schnabel. Para ilustrar o estado de espírito de Vincent, escutamos somente o som do vento e das plantas, enquanto mais uma obra revolucionária é ferozmente construída. “Ferozmente”, pois Vincent faz questão de ser rápido, alegando que esta é a única forma que encontrou para conceber seus quadros. “A energia é fundamental”, argumenta, mesmo sob críticas.


E a performance de Willem Dafoe como o ícone é nada menos do que sublime. Dafoe encontra o ponto certo ao converter Vincent numa figura frágil e inocente, abraçando a pintura de corpo e alma, numa comunhão perfeita com a natureza. A dicção calma e controlada só dá lugar a uma à agressividade quando Vincent assume uma postura defensiva, expressada na cena onde o pintor é sufocado por um grupo de crianças ávidas por conhecer seu trabalho.


Essas passagens, vale ressaltar, são as que melhor definem sua personalidade problemática, pois mesmo que vários incidentes aconteçam, jamais os vemos materializarem-se na tela e só tomamos conhecimento através do próprio Vincent, durante conversas íntimas com seu irmão Theo (Rupert Friend). Num desses episódios, o holandês chega a se atracar com duas crianças que insistiam em provocá-lo com pedras, resultando em sua internação numa instituição psiquiátrica.


Mas como há males que trazem o bem, no período em que esteve internado pintou 75 telas em 80 dias. O mais triste disso tudo é que, enquanto vivo, jamais vendeu um quadro sequer, alcançando prestígio mundial somente depois de morto, quando finalmente obteve o devido reconhecimento.


O elenco de apoio, recheado de nomes famosos em participações curtas, porém marcantes, destaca-se apenas pela interpretação de ícones como é o caso de Oscar Isaac, que ao viver Gauguin, serve como um mero gatilho para a forte interpretação de Willem Dafoe, visto que a relação de Gauguin com Van Gogh é retratada com bastante drama, principalmente pela carência do pintor holandês.


A maior prova do triunfo de No Portal da Eternidade é que, ao final da projeção, temos a plena sensação de ter passado os últimos 110 minutos dentro da mente perturbada e complexa de Vincent Van Gogh, num retrato íntimo e poético de um dos artistas mais fascinantes de todos os tempos.


NOTA 7,5

 


White Boy Rick (Idem) | Estados Unidos


Membro de uma família de classe média, Rick Wershe Jr., ainda jovem, viu sua mãe deixar o lar após não suportar mais as agressões do marido, Rick Wershe Sr., um contraventor que vivia de pequenas vendas de produtos falsificados (armas, no caso). Porém, White Boy Rick, novo filme do diretor britânico Yann Demange (71: Esquecido em Belfast), mostra que Rick Jr. teve uma vida muito mais movimentada, tornando-se aos 14 anos o mais jovem informante do FBI de todos os tempos, pegando prisão perpétua aos 17 anos depois de ser condenado por tráfico de drogas, batendo um novo recorde 30 anos mais tarde: o de criminoso não-violento que mais tempo passou na cadeia. E o mais curioso é que tudo isso realmente aconteceu.


Focando na trajetória de Rick Jr. (Richie Merritt), a produção mostra a origem de sua carreira como traficante de drogas, sua relação com o FBI e a convivência com seu pai, Rick Sr. (Matthew McConaughey) com quem nutria um relacionamento repleto de altos e baixos. Para piorar, sua irmã Dawn (Bel Powley) foge de casa com o namorado viciado em crack, deixando os dois Rick’s à mercê do mundo.


Com essa história em mãos, coube a Yann Demange a tarefa de encontrar o intérprete perfeito para Rick Jr. Uma tarefa crucial, diga-se de passagem, já que o escolhido deveria ser um garoto com carisma e talento na mesma medida, com peso para encarar um personagem forte e centralizar o filme inteiro. Infelizmente, Demange e os produtores de elenco escolheram o fraco Richie Merritt: em seu primeiro trabalho como ator, Merritt começa sua carreira com o pé esquerdo, escancarando limitações técnicas desde o início. Com um biotipo fora dos padrões Hollywoodianos, o estadunidense de 17 anos poderia ter investido numa composição mais natural, mas opta por um caminho equivocado. Com falhas primárias que incluem frases ditas sem segurança, olhares inexpressivos e um jeito de andar artificial, Merritt é o primeiro sintoma da derrocada de White Boy Rick.


E o roteiro, escrito a seis mãos, não colabora, jogando frases de efeito e um arco dramático complexo para o inexperiente ator. Demange parece ter sido engolido pela própria confiança no rapaz, já que essa é a única explicação para a utilização excessiva de frases retóricas (aquelas em que um personagem diz algo para finalizar uma conversa e sai de cena repentinamente). Esses momentos não só colocam Merritt na fogueira como enfraquecem o personagem e a própria produção, num efeito cascata que se repete a cada deslize do menino.


Quando o ator ganha a incumbência de soltar uma dessas frases retóricas (“e a tua filha é uma drogada!”), o filme ganha contornos embaraçosos, onde fica evidente que o novato não domina sequer o tom de voz do personagem, chegando ao ápice sempre que percebemos aquela dicção mecânica que costuma impregnar projetos amadores.


Enquanto isso, os roteiristas são incapazes de darem o exemplo, concebendo diálogos risíveis (“- Você não parece bem, – Vá se foder você também”) e enrolando-se com os subtextos. Note como o trio atira para todos os lados, soltando comentários sobre preconceito racial nos tribunais (“pena de branco e pena de preto”), maioridade penal e a influência dos pais na formação do caráter dos filhos.


E como é triste ver um elenco de apoio tão talentoso ser desperdiçado, a começar pelo sempre competente Matthew McConaughey (Interestelar) que, exibindo um visual ligeiramente extravagante, tem pouco o que explorar além de focar na personalidade de Rick Sr. O pai de White Boy Rick é um sujeito esperançoso, que procura agir com benevolência, além de dedicar-se 100% ao seu filho, a quem considera seu melhor amigo. Mas o tratamento infantil que recebe dos seus pais, reflexo também de sua dependência financeira, acaba impactando no relacionamento com seus filhos.


Com menos tempo de tela ainda, Bruce Dern (Os Oito Odiados) surge completamente subaproveitado como o pai do personagem de McConaughey, ao passo que RJ Cyler (Power Rangers) mais uma vez aceita um personagem aquém de seu talento. Já Jennifer Jason Leigh (Aniquilação) até consegue extrair leite de pedra, ao trazer um pouco de complexidade a um personagem unidimensional.


Acertando em cheio apenas em suas poucas cenas de ação (especialidade de Yann Demange), White Boy Rick surpreende com uma sequência impactante durante o segundo ato, quando alguém repentinamente atira em outro personagem, num exemplo eficaz de como trabalhar o suspense e como entregar uma surpresa satisfatória, além de mostrar as qualidades do ótimo design de som.


Apelando a convenções para finalizar a história, White Boy Rick tem toda a cara do clássico ‘Oscar Bait’, mirando em possíveis indicações da Academia. O tiro, porém, sai pela culatra e acerta em cheio a cara da produção.


NOTA 5

 

Assunto de Família (Shoplifters) | Japão


De longe, quase toda família é normal, mas basta um olhar mais atento para percebermos peculiaridades que podem, ou não, desafiar essa noção de normalidade. Mas, afinal, o que define uma família?


Em Assunto de Família, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, somos apresentados aos Shibata: há a avó, o patriarca, a matriarca, a filha mais velha e o filho caçula. Aparentemente ligados pelo laço familiar, os cinco constituem um lar de muito amor e calor humano, agindo com respeito e solidariedade. Mas aos poucos descobrimos que, na verdade, essa ‘família’ não é de sangue, pois foi construída com o tempo, através da necessidade de sobrevivência, que cedeu lugar à cumplicidade. Família ou quadrilha?


Pois uma ex-prostituta ao se unir com um experiente larápio, decide acolher uma criança de rua e todos passam a viver sob as asas de uma anciã, maior fonte de renda deste grupo disfuncional. Ao adotarem uma nova criança, vítima da negligência de seus pais que se agridem frequentemente, os Shibata comprovam que não há limites para a solidariedade.


Ironicamente, estamos falando de pessoas que vivem de pequenos furtos em lojas e mercearias (daí o título original, Shoplifters), mas aqui esse é um tipo de julgamento moral que não cabe. No lar dos Shibata, aos olhos do cineasta Hirokazu Kore-eda (Pais e Filhos), o importante é o sentimento que une aquele núcleo familiar, gerando uma atmosfera palpável de aconchego graças ao ótimo trabalho de direção de arte, que transforma o lar dos Shibata numa bagunça colossal proveniente do acúmulo de objetos e alimentos roubados.


Essa desorganização reflete o caráter disfuncional dessa família. Sim, pois para Kore-eda, uma família não necessariamente constitui-se de laços de sangue. Por isso, acompanhamos o cotidiano dos Shibata sem qualquer tipo de demonização de seus delitos, aqui tratados como pecadilhos justificados pela pobreza de uma família rica em afeto. Nos momentos mais sensíveis de Assunto de Família, percebemos claramente as características que se confundem com as de um núcleo familiar tradicional.


O ‘pai’ dá conselhos ao filho, que retribui com confidências. A mais velha, refletindo a cultura japonesa, contribui não apenas financeiramente, como também através de sua sabedoria, obtendo o respeito que nós brasileiros ainda não somos capazes de oferecer aos nossos idosos. E é assim, construindo singelos laços afetivos, que Kore-eda subverte os tabus da sociedade, partindo da inteligente escolha de escancarar a natureza dos Shibata desde o início.


Essa honestidade, em contrapartida, é quebrada no terceiro ato, quando aquele delicioso drama familiar cede espaço para um corpo estranho, representado por uma investigação policial que aproxima a narrativa do melodrama. Os momentos finais de Assunto de Família acabam abandonando toda aquela genuína atmosfera afetuosa em prol de um desfecho puramente dramatúrgico, que nesse contexto reflete artificialidade.


Mesmo cometendo o pecado de, no ato final, atirar o espectador para fora daquele universo tão belamente estabelecido pelo roteiro, Assunto de Família é forte o bastante para não apagar seus êxitos iniciais, que continuarão reverberando no coração de cada cinéfilo após os créditos começarem a rolar.


NOTA 8

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