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Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2024 | Abertura ("Emilia Pérez")


Acomodar-se nunca foi uma opção para o realizador francês Jacques Audiard. Sempre desafiando-se, ele transitou por diversos gêneros ao longo de seus recém completados trinta anos de carreira, e se acostumou a trazer sua própria assinatura. Dessa forma, por exemplo, um faroeste jamais poderia ser um mero faroeste em suas mãos e Os Irmãos Sisters promoveu uma quebra de várias tradições do gênero em sua narrativa. Já o que ele faz neste Emilia Pérez vai muito além de desbravar um formato diferente, pois o fato de ser um musical é um detalhe minúsculo perto do que o projeto alcança em níveis de complexidade a frente e por trás das câmeras.

 

Escrito pelo próprio diretor baseando-se livremente no romance Ecoute, de Boris Razon, o roteiro tem início com a advogada Rita Moro Castro (Zöe Saldaña, a eterna Neytiri de Avatar) mostrando-se profundamente frustrada com seu trabalho, no qual tem seus talentos explorados por um chefe que mal consegue aproveitar os esforços da subordinada no tribunal. Além disso, ela não consegue ignorar a falta de justiça que permeia a Sociedade, contaminada pela corrupção em praticamente todos os níveis. Desprestigiada, mal paga, desiludida e sem tempo, basta um empurrão para que Rita mude completamente de vida.

Esse empurrão é dado por Manitas, o chefe de um grande cartel que encontra-se infeliz, mas não somente por conta das barbaridades que o ofício lhe obriga a cometer. Manitas quer ser mulher e arma um intrincado plano para conseguir sair de cena de forma discreta e finalmente começar a viver como sempre quis. Para isso, promete uma fortuna a Rita, que deverá encontrar meios de concretizar seu desejo. No meio disso tudo, porém, está Jessi (Selena Gomez) mãe dos filhos de Manitas e que se vê completamente perdida quando é mandada para a Suíça sem notícias do marido.

Audiard não apenas desconstrói o perfil do típico líder de cartel mexicano, como traz a mudança de gênero para o debate. Colocar uma mulher trans no meio de uma trama com os dois pés fincados na vertente criminal é apenas um dos coelhos tirados da cartola pelo diretor vencedor da Palma de Ouro em 2015 por Dheepan – O Refúgio. Seu script ainda aborda outros tipos de preconceito, como a xenofobia (com fortes comentários sobre o México) e o racismo (obstáculo para Rita ter sua própria firma). Como se o enredo não estivesse denso o bastante, saiba que a produção ainda joga uma bem-vinda luz sobre os desaparecimentos que assolam o país latinoamericano. Nesse ponto, inclusive Jacques Audiard cria um sequência magnífica na qual a imagem de uma ossada recém-descoberta se sobrepõe com a mão de uma mulher sobre um saco para cadáver, como se estivesse tocando o próprio filho.

E já que mencionei seu virtuosismo técnico, vale ressaltar que o cineasta mal parece estar dirigindo seu primeiro musical. Inteligentemente, Audiard troca os cortes frenéticos por uma movimentação intensa de câmera que traz elegância sem sacrificar as coreografias, valorizadas pelos planos abertos adotados pela produção. Fazendo valer a máxima de que orçamentos limitados estimulam a criatividade, Emilia Pérez exala personalidade em seus números musicais: com zooms e travellings circulares, são segmentos pós-modernos sem o uso indiscriminado de dançarinos ou cenários grandiloquentes. A força do espetáculo reside no aproveitamento objetivo e absoluto dos recursos à disposição. E note como as canções refletem seus intérpretes. Manitas, por exemplo, como um avatar de masculinidade, exibe uma voz rouca e praticamente não canta, exigindo uma desajeitada melodia para acompanhá-lo.

Há, pelo menos, três sequências memoráveis, com letras fortes reverberando os temas do roteiro e melodias envolventes, mas a primeira protagonizada por Selena Gomez é um triunfo por si só: Jessi está num quarto, executando passos raivosos, até que sai do quadro e adentra um cenário escuro com meia dúzia de figurantes, participando de uma coreografia completamente nova antes de retornar ao ambiente principal. Pode parecer um momento deslocado, porém, indo ao encontro das canções perfomadas, foi a forma encontrada por Audiard para que pudéssemos dar uma espiada na mente conturbada de Jessi. Eu poderia citar ainda um longo plano durante um evento beneficente ou o karaokê que revela a melhor canção do filme (“Mi Camino” dificilmente será esnobada na temporada de premiações), sintetizando tudo o que vimos.

Num filme com predicados tão superlativos em praticamente todos os departamentos, chega a ser impressionante constatar que o destaque de um elenco já homogêneo e inspiradíssimo é, sem sombra de dúvidas, a atriz espanhola Karla Sofía Gascón, que percorre o forte arco dramático da personagem-título aproveitando o espaço deixado pelo texto para explorar também seu timing cômico, em instantes que suavizam a experiência. Seguindo os passos de suas colegas de elenco, não se surpreenda caso Selena Gomez seja reconhecida na temporada de premiações, mostrando seus dotes no dificílimo papel de uma figura trágica por natureza e que se encontra completamente à deriva.

 

Complexo, magnético e brilhantemente atuado, Emilia Pérez mereceu os dois prêmios que conquistou no Festival de Cannes, com Karla Sofia Gascón fazendo história como a primeira mulher trans vencedora do prêmio de Melhor Atriz.


Emilia Pérez chegará aos cinemas brasileiros em 6 de Fevereiro de 2025.


NOTA 9

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