"Não! Não Olhe!" e as formas de lidar com o espetáculo
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Não! Não Olhe!" e as formas de lidar com o espetáculo

Atualizado: 31 de ago. de 2022


Apesar de gostar de Get Out (ou Corra!, na versão nacional), não considero a estreia de Jordan Peele como realizador uma obra superlativa como convencionou-se a considerar na época. O alívio cômico excessivo, os jump scares protocolares e o terceiro ato irregular atrapalhavam um debute repleto de potencial. Já em Nós (Us, no original), seu filme seguinte, Peele demonstrou evolução ao construir uma trama complexa e recheá-la de alegorias e simbolismos enquanto mergulhava de cabeça no horror. Nope (no original), por outro lado, traz um Jordan Peele ainda melhor, claramente em seu auge como cineasta.


Como sou partidário da ideia de saber o mínimo possível antes de assistir a um filme, a fim de preservar eventuais surpresas e potencializar a experiência, farei uma contextualização bem breve: Emerald (Keke Palmer, de As Golpistas) é uma aspirante a atriz que sonha com o showbiz, mas que volta para ajudar o irmão OJ (Daniel Kaluuya, vencedor do Oscar por Judas e o Messias Negro) após a misteriosa morte do pai (Keith David, de Pesadelo nas Alturas). OJ é um domador de cavalos, treinando-os para produções cinematográficas. Entretanto, eles observam algo entre as nuvens que pode mudar suas vidas.

Assim como fez em suas incursões anteriores, Jordan Peele, hoje um autor consolidado e prestigiado na indústria, constrói sua história com base em simbolismos, transformando a narrativa numa experiência que demandará atenção especial por parte dos espectadores. Todavia, não se engane: em Não! Não Olhe! (na versão brasileira), ele passa longe de almejar a aura imprevisível de Corra! ou os níveis de complexidade de Nós. Trata-se de seu primeiro blockbuster, o que já era indicado pela época em que estreou: o concorrido verão norte-americano.

Exibindo uma segurança impressionante, Peele tem o pleno domínio da linguagem cinematográfica e do material que possui em mãos. Toda a sequência que envolve o violento ataque de um chimpanzé num set de filmagens, por exemplo, multiplica a tensão precisamente pela opção de colocar a câmera para assumir o ponto de vista de uma criança, escondida sob uma mesa enquanto observa tudo aterrorizada. O quadro fechado e a visão limitada de um cenário regado a sangue e cadáveres ao mesmo tempo em que gritos desesperados são ouvidos, dão a dimensão perfeita do trauma que marca a infância de Jupe (Steven Yeun, indicado ao Oscar por Minari: Em Busca da Felicidade).

Suas valências como cineasta também lhe permitem articular alguns elementos do terror clássico, mas se dando ao luxo de jamais abraçá-lo de fato, divertindo-se ao alimentar o suspense enquanto manipula as impressões do público. É como se o diretor/roteirista posicionasse todas as peças no tabuleiro, mas ao invés de jogar, resolvesse mandar tudo pelos ares. A maior prova dessa intenção de subverter expectativas reside num momento-chave em que OJ vai checar o estábulo e se depara com um elemento que caminha firmemente ao encontro do que foi construído para ser ansiado pelo espectador, mas que se revela um falso-positivo logo em seguida, para alívio do protagonista.

Essa sensação dura toda a primeira metade, a mais frágil por contar com um ritmo lento e refém do nosso engajamento com o mistério, desenvolvido em cima do sempre perigoso adiamento do instante decisivo. Em contrapartida, o humor se mostra muito mais orgânico aqui do que em Corra!, pois Peele tem a perspicácia de apostar não em tentativas de fazer graça, mas em reações naturais de personagens a situações extraordinárias, amplificando seus efeitos ao surgirem como instantes de escape a partir do nervosismo, como as hilárias recusas de OJ em confrontar a ameaça.

Representado por um elemento que desafia nossas percepções o tempo todo, o grande mistério da história serve, na verdade, como um artifício concebido por Jordan Peele para desenvolver todos os personagens que acabam por orbitá-lo, numa forma de canalizar motivações. As intenções do autor, embora mais acessíveis dessa vez, são mais ambiciosas do que simplesmente criar um enigma e oferecer a solução após explorar o suspense até as últimas consequências.

Analisando mais profundamente, Não! Não Olhe! é uma produção que visa abordar a natureza do espetáculo e as diferentes formas de lidar com este. Grosso modo, seria uma dicotomia entre o espetáculo em si e a espetacularização, explicitada na forma encontrada por Jupe para lucrar em cima dos eventos traumáticos que presenciou durante a infância, por exemplo, ratificada pelo próprio quando diz que costuma cobrar por visitas ao espaço em que coleciona vários objetos daquele episódio. Esse trauma aliás, também moldou seu jeito de encarar o entretenimento, passando a ganhar a vida vendendo ingressos para um show em que explora a improvisada relação que mantém com a ameaça misteriosa. Já Emerald, em sua busca pelo estrelato, enxerga nesse componente obscuro um atalho para atingir seus objetivos.

É claro que ao abordar o espetáculo e a indústria do entretenimento Jordan Peele não perderia a oportunidade de referenciar o Cinema, aproveitando para fazer uma reparação histórica ao tirar do anonimato o ator negro presente numa imagem em movimento seminal para a evolução da Sétima Arte. Ele também faz questão de incluir um diretor de fotografia, vivido por Michael Wincott (de O Conde de Monte Cristo), e que posteriormente engrossa o debate ao personificar o desejo pela imagem perfeita (com direito a ponta de uma câmera IMAX).

Enquanto isso, Daniel Kaluuya encarna OJ como um sujeito de olhar intenso e poucas palavras, em mais uma atuação expressiva. OJ, acima de tudo, é um homem que precisa trabalhar duas vezes mais do que os outros para provar o seu valor (seu nome já diz tudo). E é curioso notar como alguém pertencente à engrenagem da Indústria nega-se (ao menos no início) não apenas a investigar o grande enigma, mas também a espetacularizá-lo, fazendo jus ao título do filme. Com isso, ele assume uma função cuja importância cresce à medida em que o mistério se descortina, em mais uma evidência da competência de Jordan Peele (nesse caso, como roteirista). Ele é hábil especialmente ao utilizar o foreshadowing, resgatando no terceiro ato elementos inicialmente secundários (o “poço fotográfico” e o trabalho de OJ), mas que se revelam fundamentais para arredondar a história.

Beneficiado por efeitos sonoros tão espetaculares quanto os visuais, Não! Não Olhe! entra no terceiro ato substituindo o suspense pela adrenalina, quando se assume de vez como uma produção voltada para o entretenimento de massa. Com sequências exuberantes mesmo gravadas de dia, o grand finale mostra o olhar aguçado de Jordan Peele para a ação, como fica evidente quando alinha enquadramento, música e movimento para construir um dos momentos mais formidáveis da obra, com Daniel Kaluuya cavalgando num vasto cenário desértico.

Com planos emblemáticos como aquele em que vemos sangue escorrendo por uma janela, Peele pode ter se afastado do horror, mas permanece determinado a tirar o espectador da cadeira, produzindo jump scares poderosos e que não dependem de acordes repentinos ou truques de câmera para funcionarem. O final, ademais, tem tudo para dividir o público, seja ao incorporar um imenso boneco inflável como parte da solução de seu conflito primário, ou simplesmente por esquecer da imprensa em momentos importantes.

Encerrando a projeção com uma sequência que escancara suas pretensões comerciais, Jordan Peele entra para a seara dos blockbusters sem perder o estilo provocativo e afeito a simbolismos que marcaram seus filmes anteriores, mesmo que alguns pareçam existir apenas para motivar uma revisita (o sapato sujo de sangue). A verdade é que Não! Não Olhe! é o tipo de filme que permite múltiplas interpretações, provocando debates acalorados que tornarão a experiência pós-filme ainda mais recompensadora.


NOTA 8


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