"O Crime é Meu" traz François Ozon de volta à comédia em grande estilo
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"O Crime é Meu" traz François Ozon de volta à comédia em grande estilo


Hoje detentor de uma filmografia tão prolífica quanto eclética, muitos devem se lembrar que o francês François Ozon começou como um diretor de comédias. Foi esse gênero que catapultou a carreira do parisiense, enfileirando sucessos o suficiente para se consolidar como um cineasta das massas. No entanto, Ozon não demorou a usar o prestígio conquistado junto ao público para alçar voos maiores, testando sua versatilidade com produções cada vez mais distintas.


Workaholic nato, o diretor quatro vezes indicado à Palma de Ouro mostrou-se incapaz de passar mais do que dois anos sem lançar um filme e acumulou projetos dos mais diferentes gêneros, revelando uma verdadeira aversão ao comodismo, sempre buscando sair de sua zona de conforto. Mais de uma década depois de sua mais célebre comédia (Potiche - Esposa Troféu), Ozon retorna ao gênero que o consagrou, mas abraçando uma história que lhe permite fazer mais do que simplesmente buscar gargalhadas.

A bola da vez é uma livre adaptação da peça Mon Crime de Georges Berr e Louis Verneuil, que já foi levada às telas duas vezes (Confissão de Mulher em 1937 e A Mentirosa em 1946) e agora é trabalhada por Ozon como uma deliciosa screwball comedy com traços feministas. Esse subgênero da comédia, muito popular na década de 30 e batizado em homenagem a uma expressão do baseball, foi traduzida por aqui como "comédia maluca" e é famosa pelos diálogos tão rápidos quanto absurdos, sempre em situações igualmente disparatadas.

Em O Crime é Meu, somos apresentados a duas jovens mulheres que dividem um pequeno apartamento em Paris. Não demora muito até descobrirmos que elas estão numa tremenda pindaíba já que uma, Pauline (Rebecca Marder, de sucessos como A Garota Radiante e Encontros), é uma advogada desempregada e a outra, Madeleine (Nadia Tereszkiewicz, do ótimo Babysitter) sofre para conseguir trabalhos como atriz. A solução se desenhava com o encontro entre esta última com um poderoso produtor de teatro, mas que termina em tragédia após o mesmo ser encontrado morto pouco depois da moça deixar o local. O que tinha tudo para ser mais um imenso pepino na já difícil vida das moças, passa a ser encarado como uma oportunidade de ouro, já que Pauline dá a ideia de Madeleine assumir a autoria do crime, (em legítima defesa, claro) aproveitando os holofotes do processo judicial para alavancar sua carreira na dramaturgia.

Assumindo a farsa como linguagem desde o início, Ozon deixa claro que a verdade é apenas uma questão de conveniência, construindo uma lógica nonsense que dita as ações dos personagens tal qual numa típica comédia maluca da Era de Ouro de Hollywood, resultando numa homenagem que faz jus a pérolas como Aconteceu Naquela Noite e Levada da Breca, especialmente numa sequência com os veteranos Fabrice Luchini (O Melhor Está Por Vir) e Isabelle Huppert (A Sindicalista), destaques incontestáveis ao demonstrarem um timing cômico invejável, provocando as maiores gargalhadas da projeção.

Luchini, que já havia trabalhado sob a direção de Ozon no brilhante Dentro de Casa, constrói um tipo tolo, de modos aparvalhados e fala pretensiosa, exibindo boa dinâmica com o igualmente competente Olivier Broche (O Próximo Passo), outro intérprete experiente que aproveita o tempo de tela para arrancar boas risadas do público. E enquanto Isabelle Huppert, com sua composição extravagante, surge radiante e exalando vivacidade, Dany Boon (o inspetor Delacroix de Mistério em Paris), em grande fase no cinema francês, faz muito com pouco, já que Ozon lhe extrai uma performance carismática, mas com um toque irresistível de mistério.

Já o enigma central, que em outro contexto poderia servir como fio condutor e se desdobrar numa narrativa policial repleta de reviravoltas (vide as adaptações de Agatha Christie por Kenneth Branagh), é um mero playground para François Ozon se divertir com seus caríssimos brinquedos (o elenco estelar certamente abocanhou uma parcela considerável do orçamento). Em mãos menos hábeis, como as de Tom George no razoável Veja Como Eles Correm, Mon Crime talvez se desenrolasse como uma releitura apenas nostálgica de um período vigoroso do Cinema, mas Ozon é mais ambicioso, trazendo uma abordagem feminista que, embora menos contundente do que em esforços anteriores, explora ao máximo o potencial de seu elenco feminino, produzindo ecos do movimento #MeToo ao não se esquivar das semelhanças com o recente episódio envolvendo o produtor Harvey Weinstein, que foi de Deus a Diabo na Meca do Cinema.

Além disso, Ozon promove uma ode ao Cinema, mas nunca de forma gratuita. Sim, as referências a mestres como Billy Wilder e Alice Guy talvez surjam de supetão, mas ganham corpo através da ideia do diretor francês de transformar a história num exercício metalinguístico comprovado pelos flashbacks que são filmados como curtas em preto e branco e com razão de aspecto quadrada, trazendo a referência para dentro do campo imagético. Não por acaso, a cereja do bolo se revela nos instantes finais, quando um espetáculo teatral amarra os acontecimentos da narrativa.

Contando também com um design de produção cuidadoso não apenas na recriação da época, mas ao conferir personalidade aos diferentes ambientes da produção (repare nas diferenças substanciais entre o apartamento das protagonistas, o gabinete do juiz e a luxuosa mansão do produtor), O Crime é Meu ainda presenteia o público com figurinos que fazem jus à fama de perfeccionista de Ozon, pois além de bem acabados, contribuem para a narrativa ao ilustrarem a ascensão de Madeleine e Pauline na sociedade, bem como ao retratar os cacoetes burgueses da época.

Sucesso de público na França (mais de um milhão de espectadores), O Crime é Meu promove um reencontro de François Ozon com um Cinema mais popular, relembrando suas origens como diretor de sucesso entre as massas. Após se aventurar por obras ousadas e que refletiam um profissional incapaz de se acomodar, Ozon segue a tendência iniciada em Peter Von Kant de investir em histórias calcadas em referências, sejam elas ao seu ídolo Fassbinder ou a um Cinema há muito esquecido, mas que nunca deixa de ser divertidíssimo.


NOTA 7,5


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