"Os Banshees de Inisherin": Solidão e depressão via humor negro
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Os Banshees de Inisherin": Solidão e depressão via humor negro


A julgar pelo significado por trás dos “banshees” do título (criaturas da mitologia celta capazes de preverem a morte), o novo filme de Martin McDonagh, uma comédia de humor negro com doses cavalares de ironia, dá a entender que abraçará a tragédia em algum momento, consumando o flerte quase natural que predomina nos diálogos da produção. Na história, escrita e dirigida por McDonagh, Pádraic (Colin Farrell, em uma de suas atuações mais disciplinadas) é um sujeito de coração bom e olhar puro, mas que sofre pelo rompimento unilateral e repentino da amizade intensa que tinha com Colm (Brendan Gleeson, em tons equilibrados de resignação e melancolia). Tentando entender o que teria feito para motivar atitude tão drástica por parte do agora ex-amigo, Pádraic conduz um estudo particular e minucioso entre os poucos habitantes da gélida e isolada ilha de Inisherin, na costa da Irlanda dos anos 20.

O veredito, encarado pelo homem como o diagnóstico de uma doença terminal, reforça a ideia de que suas intenções cândidas não apagam o fato de ser um sujeito de prosa repetitiva e por vezes desinteressante (há quem aponte a insistência em falar sobre as fezes de seu pônei), o que o leva a perder a cabeça. Sempre agindo de modo a soar simpático e bondoso, como poderia ser chamado de chato? Pior, “estúpido”, roubando o adjetivo do jovem Dominic (Barry Keoghan, perfeito no papel), visto como o delinquente da ilha. O que não entra na mente limitada de Pádraic é que não se vive só de boas intenções, ainda mais num lugar pequeno e descolado do mundo, onde tudo se repete e todos se conhecem.

Embora muitos na minha sessão tenham gargalhado fartamente, Os Banshees de Inisherin não é um filme de riso rasgado, ainda que a graça seja intermitente. Nos diálogos que invariavelmente descambam para o absurdo (daí o humor), o filme exibe uma atmosfera que conecta o espectador ao universo diegético através do inusitado, com problemas encarados de formas cada vez mais estapafúrdias, vide a solução encontrada por Colm para impedir as investidas de Pádraic.

O que Colm quer é exatamente o oposto do que o antigo melhor amigo é capaz de oferecer. Chegando a um grau de consciência da passagem do tempo que inviabiliza sua capacidade de enxergar os pequenos prazeres da vida (contidos majoritariamente no inofensivo ato de jogar conversa fora ou passar o tempo tomando umas e outras), o homem, bem mais velho que o intransigente parceiro de bebedeiras, é encarnado por um Brendan Gleeson hábil ao transmitir no olhar o cansaço de uma vida frustrada por não gerar um legado. “O tempo que perco com você, poderia estar usando para compor uma música”, ele justifica antes de apontar que a obra de Mozart é muito mais lembrada do que sua atitude, acusada de ser “antipática”.

Uma das virtudes do roteiro jocoso de McDonagh reside na ausência de um passado para todos os elementos que compõe a história. Por eliminação, sempre através dos imprevisíveis personagens, somos informados do que não aconteceu, algo ilustrado com perfeição na hilária cena do confessionário em que Colm rechaça uma insinuação homossexual por parte do padre, devolvendo na mesma moeda e enfurecendo o sacerdote irremediavelmente. Sim, o humor feroz de McDonagh não poupa ninguém, nem o público, que só pode imaginar o contexto no qual Inisherin está inserida.

Só através do bom design de som ficamos sabendo que uma guerra está em curso, com explosões e tiros ocupando a paisagem sonora em segundo plano (em todos os sentidos), pois ao diretor/roteirista, pouco interessa o aprofundamento de uma ligação entre o conflito armado e os habitantes da comunidade. Interesse mesmo, só na alienação por parte de pessoas satisfeitas com o microcosmo que habita, (retro)alimentando fofocas e intrigas com a mesma desfaçatez com que se referem à guerra. Os polos se invertem, havendo uma banalização do extraordinário e amenidades gerando escândalo (o que poderia ser mais chocante do que o fim de uma amizade fraternal?).

A vila, construída com ares primitivos, beneficiando-se de um horizonte bucólico ilustrado pelos campos verdejantes da costa irlandesa, possui apenas um pub e uma igreja, obrigando a população a borrar a fronteira que separa os dois ambientes, conectados fortemente pelo caráter ritualístico que envolve os hábitos locais. O ressentimento que sublinha o desgaste da amizade entre os protagonistas é pequeno diante da solidão melancólica que os habitantes insistem em esconder. Pois, Inisherin, com seu tempo permanentemente nublado, é a representação geográfica da solidão, ecoada por um estilo de comunicação limitado a celeumas que só ganham tamanho quando mantidas em segredo.

Reunindo a dupla matadora (literalmente) do subestimado Na Mira do Chefe, Martin McDonagh faz um retrato irônico da depressão e da solidão, tocando em tropos fortes (abuso sexual, relação entre Arte e Vida, legado) com uma firmeza que acaba por não se sustentar, carecendo da eloquência exibida em sua obra-prima, o divisivo Três Anúncios Para um Crime, que soube lidar melhor com o seu tema justamente por prezar pela objetividade narrativa.

Determinado a debochar de tudo e de todos, McDonagh deixa ideias pelo caminho, atirando-as no mesmo vazio temido por Colm, como a aleatória Sra. McCormick (o mais perto que o roteiro chega de uma Banshee, cuja aura misteriosa é tratada com o mesmo desleixo travestido de irreverência), mas que consegue a proeza de esticar uma premissa assumidamente ridícula ao ponto de gerar uma obra com quase duas horas de um existencialismo pautado pelo desespero.


NOTA 8


* Filme visto durante o Festival do Rio 2022


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