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Foto do escritorGuilherme Cândido

"Queer" provoca e fascina, mas nem Daniel Craig escapa de final frustrante



Se o cineasta Luca Guadagnino goza hoje de extremo prestígio na Indústria, despertando admiração até mesmo dos famigerados críticos (incluindo este que vos escreve), muito se deve à obra-prima Me Chame Pelo Seu Nome, um romance dilacerante entre um adolescente e um homem mais velho contado sob uma ótica puramente poética (e consequentemente melancólica). O fascínio de Guadagnino pelo cenário queer ainda nos presenteou com outra preciosidade, a minissérie We Are Who We Are, onde Jack Dylan Grazer deixava os papéis infantis em It – A Coisa e Shazam! de lado para abraçar o papel de um jovem em busca de identidade.


Mas o que essas produções possuem em comum, além da exploração da sexualidade, é justamente uma abordagem mais crua do desejo, algo retratado com tintas radicais e alegóricas no subestimado Até os Ossos e próximo da perfeição no excepcional Rivais, lançado nos cinemas ainda em 2024. Basta ver alguns minutos do longa estrelado por Zendaya, Mike Faist e Josh O’Connor para perceber o quão difícil é imaginar alguém melhor do que Luca Guadagnino para levar o desejo às telas e as tomadas repletas de tesão entre os atores supracitados corroboram essa tese.

Queer, adaptação cinematográfica do livro homônimo escrito pelo norte-americano William S. Burroughs (1914-1997), é como um pot-pourri das criações anteriores do realizador indicado ao Oscar em 2018, trazendo desejo, tesão e um protagonista tentando descobrir quem é. À princípio, Lee (Daniel Craig) é um estadunidense exilado na Cidade do México dos anos 50 vivendo solitariamente entre bares e hotéis enquanto se entrega às drogas (lícitas e ilícitas) e ao sexo com desconhecidos. Até Eugene (Drew Starkey), um ex-militar tímido e de feições joviais, entrar na sua vida como um furacão, tornando-se objeto de obsessão do protagonista.

Nesse ponto, a história é curiosamente ofuscada por Craig, que após quinze anos encarnando James Bond, um ícone da masculinidade e sinônimo de virilidade, surpreende ao protagonizar fortes sequências de sexo com outros homens. A primeira, inclusive, já traz um vislumbre da desconstrução dessa imagem máscula, com Craig agarrando os glúteos do cantor pop Omar Apollo (num personagem desafiador para um novato como ele). Mas é o primeiro momento íntimo entre Lee e Eugene que incinera de vez qualquer vestígio existente daquele símbolo de macheza personificado pelo ator britânico, cuja entrega é absoluta.

Essas passagens mais quentes, claro, vão reverberar quando o filme começar a ser exibido nesta quinta-feira, mas não deveriam ofuscar o brilho da performance de Daniel Craig (digna de uma indicação ao Oscar), um intérprete que já havia sugerido maior flexibilidade sexual a seu James Bond em 007 Operação Skyfall. Craig concebe Lee como um homem solitário, de hábitos autodestrutivos e que encontra em Eugene um vetor para dar vazão aos seus desejos. O maior acerto da composição do ator se diz respeito à forma com que o protagonista interpreta a palavra “queer”, antigamente um adjetivo pejorativo utilizado para caracterizar homossexuais e, hoje, uma identidade. O próprio exílio funciona como uma metáfora para a jornada de Lee, privado de ser quem é em seu próprio país e, agora, alguém que se permite ser queer “sem abandonar a masculinidade”, como ele mesmo reflete em determinado momento.

Esse apetite pelo autodescobrimento é evocado por Daniel Craig com extrema sensibilidade, beneficiando-se imensamente do texto de Justin Kuritzkes (o mesmo roteirista de Rivais), que transforma os traços da personalidade de Lee em peças de um quebra-cabeça, lançadas ao vento como provocações a serem interpretadas pelo público na tentativa de formar uma imagem definitiva. Paradoxalmente, isso engrandece Craig de tal forma, que todos os demais membros do elenco são engolidos em cena, especialmente Drew Starkey, figurinha carimbada de fitas adolescentes como a série Outer Banks e o longa-metragem Com Amor, Simon. Starkey contenta-se em nos mostrar porque Lee torna-se tão obcecado por Eugene, seja pelo mistério provocado por suas aparições monossilábicas ou pelas lentes do diretor de fotografia tailandês Sayombhu Mukdeeprom, tão ávidas pelo corpo de Eugene, quanto o próprio Lee.

Mukdeeprom, aliás, como bom colaborador de Luca Guadagnino, adota uma imagem resplandecente, muitas vezes aproveitando os raios solares para conectar a narrativa à atmosfera ensolarada e febril almejada pelo cineasta, com direito a cenas inteiras rodadas ao entardecer, como a interna em que Lee e Eugene conversam num sofá enquanto são banhados por fachos de luz vindos da janela, que por sua vez revela a paisagem mexicana. A Cidade do México vista em Queer é um lugar ao mesmo tempo sorumbático e excitante, sendo palco de flertes eletrificados, mas também servindo como um avatar para a faceta desgrenhada de Lee. Falando nisso, note como os personagens estão quase sempre suados, desfilando seus corpos besuntados sob luzes quentes em ambientes rústicos e confinados, resultando em interações sempre íntimas e cuja libido é onipresente.

Pena que tudo isso seja sumariamente mandado pelos ares quando a história, desnecessariamente contada em capítulos, toma um rumo inesperado e aleatório ao se encaminhar para o final. Lee resolve encarnar uma versão entorpecida de Indiana Jones, viajando até os confins da Amazônia atrás de uma planta que promete habilidades telepáticas. Eugene perde espaço e vê sua função mudar para atender a uma metáfora que parece elaborada apenas para abarcar os delírios psicodélicos de Guadagnino, completamente perdido ao tentar finalizar seu filme. É como se o italiano não tivesse ideia de como resgatar Queer do limbo no qual foi atirado, apelando para sequências surreais que só ressaltam seu desespero em lançar boias para o espectador, torcendo para que as agarremos no intuito de chafurdar na lama à procura de um sentido, mesmo que alegórico.

Contando com mais uma trilha sonora brilhante (embora menos espetacular do que a de Rivais) da dupla Trent Reznor e Atticus Ross, caminhando a passos largos rumo ao panteão dos compositores modernos, Queer ainda acerta em cheio ao apostar acertadamente no anacronismo para embalar a jornada de Lee, trazendo clássicos de Nirvana, Prince e New Order, por exemplo, que escancaram a vocação de Luca Guadagnino para provocar, como o desfecho de seu mais recente filme deixa claro.


NOTA 7

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