Reflexões sobre legado marcam 'O Menino e a Garça', oitava despedida de Miyazaki
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Reflexões sobre legado marcam 'O Menino e a Garça', oitava despedida de Miyazaki

Atualizado: 19 de fev.


É difícil acreditar quando o mestre Hayao Miyazaki diz que O Menino e a Garça será seu último filme. Afinal, estamos diante de sua oitava (suposta) despedida. Mas o que teria feito o Deus dos Animes abandonar a aposentadoria decretada pela última vez em 2013, com o lançamento do soberbo e maduro Vidas ao Vento? O Menino e a Garça nos dá farto material para extrair respostas, embora não se apresse muito para isso.


Mais esfíngico e espiritual do que seus clássicos mais famosos, o filme pegou emprestado o título do romance “How do You Live?” (“Como Você Vive?”, em tradução literal) que Genzaburo Yoshino publicou em 1937, para seu lançamento caseiro, estranhamente sendo rebatizado como “O Menino e a Garça” no restante do planeta. O tal livro, inclusive, é acessado pelo protagonista em determinado momento e dá pistas de um Miyazaki refletindo sobre sua própria carreira e o que fazer a seguir. É como se o artista de 82 anos estivesse expondo algumas sessões de terapia, ao mesmo tempo que relembrando seus melhores trabalhos e conjecturando um mundo pós-Miyazaki.

Nesse aspecto, a única surpresa real reservada pelo projeto é o fato de o protagonista ser um menino de doze anos, contrariando décadas de tradicionais personagens femininas fortes. Mahito soa como um corpo estranho num terreno de muitas familiaridades, como o cenário urgente e trágico da Segunda Guerra Mundial. Dotado de uma educação formal que mais parece ter sido adquirida numa instalação militar, o jovem tem seu coração esfriado pela morte precoce da mãe, vítima de um bombardeio impiedoso durante um dia de labor num hospital. A imagem do menino correndo em direção à mulher sendo consumida por chamas enquanto sirenes e luzes avermelhadas compõem o ambiente, remetem diretamente a O Túmulo dos Vagalumes (1988) outra obra-prima do Studio Ghibli, mas dirigida por Isao Takahata, amigo e parceiro de Miyazaki.

É o incidente incitante de uma história que se desnudará à base do luto, outro tema recorrente na carreira do realizador japonês. Mahito é um sujeito calado, atormentado pela perda, mas principalmente pela culpa, pois pensa que poderia ter salvo a mãe. O pai do garoto não vê alternativa senão levá-lo para morar com a ex-cunhada e atual candidata a substituta da esposa falecida. Claro que Mahito não vê com bons olhos tais novidades, mas também não faz o tipo rebelde rude, apenas reservando-se ao direito de se isolar, sendo eventualmente contrariado pela chegada de uma misteriosa Garça-Real.

É aqui que devo alertar o leitor a não alimentar expectativas quanto ao animal, que desempenha um papel radicalmente distante do que se pode imaginar, até mesmo para os padrões Ghiblianos. Pois a Garça inferniza o menino, que não demora muito a ter alucinações. "O que será esse ser que parece estar querendo se comunicar comigo?" Pensa. A busca por respostas o leva a uma imensa e misteriosa torre que servirá como um portal para mais um mundo Miyazakiano. Nesse momento, enquanto a história parece trilhar um caminho, o veterano contador de histórias usa um velho truque para puxar o tapete do espectador.

Valendo-se do costumeiro contraste entre o entristecido, sem vida e perigoso mundo real com o inebriante, colorido e vibrante mundo fantasioso, Miyazaki ecoa O Castelo Animado (os portais, a terra verdejante), Princesa Mononoke (as pequenas criaturas brancas) e o oscarizado A Viagem de Chihiro (a senhora com uma verruga na testa), mas ao abraçar uma complexidade temática maior do que o habitual, o sentimento obtuso acaba se sobrepondo ao de fascínio. É quando O Menino e A Garça fica sobrecarregado em termos dramáticos e até mesmo de personagens, algo constatado não apenas pelas numerosas subtramas, como até pelo surgimento de figuras importantes já no terço final.

Isso não impede o já esperado encantamento diante de um mundo exuberante e bem construído, cabendo até um questionamento a respeito de como alguém com uma carreira (e uma vida) tão rica ainda é capaz de conceber universos tão espetaculares. Mas não nos esqueçamos que é o próprio Miyazaki quem está se questionando aqui, com direito a uma sequência reveladora incluindo uma espécie de entidade que aborda a necessidade de encontrar um sucessor para continuar ‘tocando’ o mundo, prezando pelo equilíbrio enquanto busca uma sociedade desprovida de maldade. A referência a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) é um deleite a parte.

Embora sobre conteúdo para interpretações e meditações, falta a O Menino e a Garça justamente a magia e o carisma que alçaram Hayao Miyazaki ao posto de maior nome da Animação desde Walt Disney, resultando numa experiência menos cativante e, consequentemente, sensivelmente mais morosa. Uma despedida que não chega a ser decepcionante, pois tem muito a dizer a respeito de seu autor, a quem podemos conceder o benefício de exorcizar seus demônios para que possa finalmente partir em paz.


NOTA 7


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