Retrato de uma gigante do streaming em crise
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Retrato de uma gigante do streaming em crise

Já se foi o tempo em que a Netflix reinava absoluta no cenário dos streamings mundiais. Após os grandes estúdios de Hollywood perceberem que poderiam apostar em seus próprios catálogos e clamarem pela exclusividade de suas obras, a gigante, temendo pelo iminente esvaziamento de suas atrações, resolveu abrir os cofres e investir em conteúdo original. Atirando para todos os lados, empresa passou a dar sinal verde para qualquer obra, acolhendo desde projetos pessoais de autores independentes como os irmãos Duplass, até besteiras anteriormente recusadas pela Indústria. Assim, seu catálogo, aos poucos, foi ficando abarrotado de produções de qualidade questionável, o chamado “refugo de Hollywood”.


Finalmente, em 2022, a conta parece ter chegado: com a queda abrupta de mais de 1 milhão de assinantes, a companhia viu suas ações despencarem mais de 30% na Bolsa de Valores, perdendo mais de 50 bilhões de dólares em valor de mercado. Para estancar a sangria, foram anunciadas demissões em massa no mundo inteiro (17 só no Brasil), aumento no valor da assinatura e medidas antes impensáveis, como a futura cobrança de um valor adicional pelo compartilhamento de contas e até mesmo planos com publicidade embutida.

Sua mais nova produção, "O Agente Oculto" (ou "The Gray Man", no original), é mais uma aposta desesperada da plataforma, que anunciou ter desembolsado cerca de 200 milhões de dólares (um recorde) para custear o que planeja ser seu futuro carro-chefe. Depois de "Esquadrão 6" e "Alerta Vermelho", está claro que a empresa tenta, a qualquer custo, construir sua própria franquia de ação, uma lacuna que ainda separa seu catálogo original daqueles ostentados pela concorrência.


O problema é que os balanços negativos e seu infame portfólio de “Originais Netflix” acabam endurecendo as negociações com grandes nomes da indústria. Adam Sandler, que rendeu várias visualizações graças a um acordo milionário, já não é mais o bastante e a empresa agora mira alto, apostando em astros como Dwayne Johnson, Ryan Reynolds e Gal Gadot (juntos em "Alerta Vermelho"). O problema é que para ter esses rostos fotogênicos enchendo a tela inicial de seu aplicativo, é preciso desembolsar quantias obscenas de dinheiro, - não é à toa que Johnson, Reynolds e Gadot figuram em listas dos atores mais bem pagos do mundo há tempos - fazendo com que grande parte dos inchados orçamentos sejam reservados para o pagamento de seus cachês.


Só assim para convencer Ryan Gosling, nome consagrado da indústria, presente em sucessos de público e crítica como "Drive", "La La Land" e "Blade Runner 2049" (e famoso por escolher a dedo seus papéis), a embarcar num projeto como "O Agente Oculto", filme de ação com toques de espionagem escrito e dirigido pelos Irmãos Russo, os mesmos responsáveis pelo megassucesso da Marvel "Vingadores: Ultimato". Mas Gosling não foi o único alvo da empresa, que ainda foi atrás de Chris Evans (o Capitão América) e Ana de Armas, atriz cubana que está em ascensão após brilhar em "Entre Facas e Segredos" (cuja continuação já foi adquirida pela Netflix) e na mais recente aventura de James Bond ("007 Sem Tempo Para Morrer").


Há mais de uma década rondando pelos corredores dos estúdios hollywoodianos, o roteiro de "The Gray Man" é, na verdade, a adaptação de uma série literária de mesmo nome: Romance de estreia do escritor norte-americano Mark Greaney, "O Homem Cinzento" foi publicado pela primeira vez em 2009 e fez tanto sucesso que obrigou Greaney a largar o emprego como médico para se dedicar integralmente à carreira de escritor. E a série continua à pleno vapor, com doze livros lançados (o mais recente chegou às livrarias em fevereiro deste ano) e mais um programado para o ano que vem. Grande fã de Tom Clancy (1947-2013), autor best-seller cujas obras ganharam adaptações para quase todas as mídias existentes, Greaney admitiu a influência do criador de Jack Ryan, com quem teve a sorte de trabalhar como colaborador em três romances, todos ambientados no mundo da espionagem.


Já a adaptação que chegou ao catálogo da Netflix na última sexta-feira (22) sob a pressão de ter sido a produção mais cara de sua história, possui uma embalagem tentadora, com cara de blockbuster diferente – afinal, marca a reunião do Rei dos filmes independentes (Ryan Gosling) com um dos símbolos dos sucessos de bilheteria da Marvel (Chris Evans) – disfarça uma produção com pouco esmero visual, mais preocupada com os closes de seus caros rostos. Faltam efeitos visuais que seduzam o público mais casual, que procura uma fuga da realidade após um dia de trabalho ou que apenas queira juntar a família para uma sessão caseira no final de semana.


Os Irmãos Russo, sem os super-heróis que se vendem sozinhos, enfrentam dificuldades para elaborarem sequências de ação que façam valer o orçamento milionário, não encontrando desculpas convincentes para espalhar suas estrelas num jogo de gato e rato ao redor do globo, lembrando o saudoso jogo de tabuleiro "Interpol", mas em larga escala.

As presenças do brasileiro Wagner Moura e do britânico Regé-Jean Page, pratas da casa (das séries originais "Narcos" e "Bridgerton", respectivamente), soam como um aceno gratuito aos assinantes, numa autorreferência que vale mais pela curiosidade do que pelos papéis em si, pois pequenos. Vítima da problemática divisão de tempo de tela, Moura está em apenas uma sequência, ao passo que Page tem a sorte de ver suas breves cenas diluídas nas quase duas horas de duração.


Diante de tanta badalação, é óbvio que "O Agente Oculto" liderará o ranking dos mais assistidos, resta saber se será por tempo suficiente para ser encarado como o sucesso que a Netflix tanto busca, uma caríssima tábua de salvação. À primeira vista, em termos puramente narrativos, fica difícil de encarar "The Gray Man" como o início de uma franquia de espionagem tal qual na Literatura, mas a julgar por seus colegas de catálogo, com sequências indistinguíveis entre si e uma enxurrada de filmes natalinos, tudo é possível. Por outro lado, o financeiro, filmes natalinos custam muito menos do que 200 milhões de dólares...


Aguardemos os próximos passos da Netflix.


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