Suspense "Propriedade" expõe abismo entre classes sociais no Brasil
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Suspense "Propriedade" expõe abismo entre classes sociais no Brasil


Montador experiente tendo trabalhado com o conterrâneo Kléber Mendonça Filho no ótimo curta Vinil Verde, o pernambucano Daniel Bandeira também não chega a ser um estreante na direção de um longa-metragem, função que desempenhou em Amigos de Risco, exibido no Festival de Brasília em 2007. Influenciado não apenas pela verve política, mas também pela condução elegante de Mendonça Filho, Bandeira pega emprestado o tom macabro de sua colaboração anterior para fazer uma alusão à máxima proferida pelo cineasta e crítico de Cinema francês Éric Rohmer (1920-2010), que “todo bom filme é um documento de seu tempo”. Portanto, quando vemos uma plateia de curiosos aplaudir efusivamente a execução a sangue frio de um sequestrador armado, nos deparamos com a realidade nua e crua do Brasil contemporâneo. Esse caso, que abre a narrativa e passa muito longe de ser isolado, é apenas uma das formas encontradas por Daniel Bandeira para expor um cenário que vem se tornando corriqueiro nos últimos anos.

A história se passa em Recife e acompanha Tereza (Malu Galli), a sobrevivente do tal sequestro-relâmpago, que agora enfrenta dificuldades para superar o trauma. Reclusa, ela eventualmente cede às insistentes tentativas do marido (Tavinho Teixeira) de passar uns dias no interior, à procura de uma tranquilidade que já não é mais ofertada pela charmosa capital pernambucana. O local escolhido é um antigo sítio da família que está prestes a ser vendido. Mas qual será o destino dos numerosos funcionários e seus respectivos dependentes? Esse é exatamente o questionamento que irrompe dos conflitos costurados pelo roteiro de Daniel Bandeira.

Não por acaso, Tereza chega com o marido pouco depois de vermos os trabalhadores se revoltarem ao saberem da notícia de que perderão a única fonte de renda. Opondo membros de uma classe abastada que posa de filantrópica por remunerar seus serviçais, muitas vezes encarregados de tarefas prosaicas (um sacrilégio para os habitantes do panteão econômico!) e uma considerável parcela da população, oprimida pelo abismo social que a separa da minoria autoproclamada “elite”, Bandeira é hábil ao construir um discurso que prioriza as ações em detrimento das palavras. Imagens impactantes como a do caseiro esfaqueado ou a de uma criança com os dedos presos numa porta, são muito mais eloquentes do que um mero diálogo expositivo, evitado por aqui. A situação todos já conhecemos, não se faz necessária qualquer explanação prévia.

Mas o recifense não é competente apenas como provocador, tecendo críticas sociais com distinção e eventual sutileza, obtendo êxito especialmente na construção de uma atmosfera inquietante e que insere Propriedade, com acachapante eficácia, no avolumado subgênero dos thrillers psicológicos. A trilha sonora pesada de Caio e Nicolau Domingues impede o espectador de baixar a guarda, assim como seus personagens, sempre alertas para agarrar com unhas e dentes a oportunidade de conquistar seus objetivos. Nesse aspecto, a ideia de manter Tereza trancada em seu luxuoso e bem equipado carro blindado pode até trazer um déjà vu àqueles que assistiram a A Jaula, outro longa-metragem nacional com vocação para o Cinema Social.

Mas diferentemente do filme estrelado por Chay Suede, muito mais expressivo como obra de gênero do que como alegoria política, Propriedade usa este segundo evento traumático vivido por Tereza como uma forma de inverter a impiedosa lógica que rege a Sociedade há séculos, ao mesmo tempo que age como realizadora de um desejo punitivo. No mundo cão imaginado por Bandeira, não há espaço para a empatia, fazendo com que o diálogo, ensaiado em parcos momentos, torne-se um exercício de futilidade. Uma ilusão que já não engana nem mesmo os próprios personagens.


E talvez seja esse o maior legado de Propriedade: mostrar como um sentimento tão puro pôde se extinguir em tão pouco tempo.


NOTA 8

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