Guilherme Cândido
Adaptação de 'É Assim Que Acaba' reflete os conflitos de seus bastidores
Neste mês, a Lei Maria da Penha completa 18 anos no Brasil. Trata-se de uma legislação criada especificamente para combater a violência contra mulheres. Mesmo assim, com quase duas décadas de existência, o número de mulheres vítimas de violência doméstica segue aumentando. De acordo com dados da Agência Brasil divulgados no ano passado, a cada 24 horas, ao menos oito pessoas do sexo feminino são vitimadas, um crescimento de 22% em relação a 2022. Ameaças, agressões, torturas, ofensas, assédio... São inúmeras as violências sofridas e que não começam ou se esgotam em mortes. O mesmo estudo apontou que, em 2023, uma mulher morreu a cada 15 horas em razão do gênero, majoritariamente pelas mãos de parceiros ou ex-parceiros. Um assunto tão sério e importante que vem ganhando um espaço cada vez maior nas mais diversas mídias.
É Assim Que Acaba, primeiro ganhou as prateleiras das livrarias, rendendo à texana Colleen Hoover o posto de autora do romance mais vendido de 2022 e é claro que não demoraria até os produtores de Hollywood correrem para adquirir seus direitos de adaptação. Com potencial para seguir os passos das lucrativas obras de Nicholas Sparks, It Ends With Us (no original), chega aos cinemas com a incumbência de jogar luz sobre um problema tristemente contemporâneo, mesmo que a mensagem seja transmitida com algum ruído.
Nossa heroína é Lily Bloom (Blake Lively), jovem que acaba de perder o pai e está se mudando para Boston a fim de recomeçar a vida. Lá ela abre uma floricultura e faz amizade com a espevitada Allysa (Jenny Slate), uma mulher rica que se oferece para trabalhar na loja e poder contornar o entediante cotidiano de uma vida abastada. Numa bela noite, Lily acaba esbarrando com Ryle (Justin Baldoni), um neurocirurgião de corpo malhado, conta bancária recheada e... instantaneamente encantado pela protagonista. Tanto que, após um reencontro acidental, decide perseguir a moça até conquistá-la de vez. É a gênese de um relacionamento que se revelará, no mínimo, conturbado.
Iniciando a projeção com um diálogo dolorosamente artificial, onde mal consegue disfarçar o propósito de apresentar informações sobre a vida de Lily (“não acredito que estamos aqui escolhendo roupa para o enterro do seu pai”, “caramba, justamente agora que você está se mudando para Boston” são apenas algumas das pérolas proferidas), a roteirista Christy Hall (criadora de I Am Not Ok With This, série da Netflix) deixa claro já nos primeiros minutos que sutileza não será um pilar das mais de duas horas restantes de projeção. O que passa longe de ser o maior problema da história, verdade seja dita.
Alternando o presente de Lily com longos segmentos centrados em sua juventude (quando a personagem é interpretada pela expressiva Isabela Ferrer), É Assim Que Acaba reflete na tela a dualidade que tomou conta da produção nos bastidores e gerou um efeito cascata evidente em cada frame da versão que chegou aos cinemas. É cristalina a percepção de dois filmes brigando para coexistir nas telas, dando sentido às recentes notícias envolvendo um desentendimento entre a estrela Blake Lively e o diretor (e colega de elenco) Justin Baldoni, também produtores do longa-metragem. Há artigos dando conta de que Baldoni queria focar no lado dramático da história, ao passo que Lively gostaria de uma versão mais romantizada, tendo sido atendida pelo estúdio. Independentemente do corte escolhido, o filme fica num meio-termo insatisfatório em ambas as frentes.
Gasta-se um tempo precioso construindo a união entre Lily e Ryle, com direito a uma fotografia em tons quentes e calorosos, dignos dos clássicos do Cinema Romântico. Nesse ínterim, Baldoni, que já tem o meloso, mas superior, A Cinco Passos de Você no currículo, faz de tudo para arrancar suspiros do público feminino, apelando, inclusive, para canções pop na hora de embalar as piegas sequências amorosas. As tiradas supostamente românticas e definitivamente cafonas fazem de Ryle um sujeito grudento e até artificial em alguns momentos, mas isso não é culpa da direção e sim do roteiro excessivamente açucarado.
Mas o grande problema de É Assim Que Acaba reside no jeito como a produção aborda a violência doméstica, pauta seminal atualmente e um bem-vindo chamariz. A forma ambígua como Baldoni filma as primeiras agressões de seu personagem a Lily deveriam despertar uma dúvida no público (ele realmente fez isso ou foi um acidente?), mas isso cai por terra quando a própria narrativa se encarrega de dar uma resposta mais do que definitiva (há um flashback MOSTRANDO o que de fato ocorreu). Ora, porquê tanto se trabalhou para embaçar a imagem do homem e pintá-lo com tons mais cinzas, se a intenção sempre foi esclarecer sua posição na trama enredada pelo roteiro? É possível identificar uma tentativa (moralmente perigosa) de tornar Ryle mais humano (incluindo até o aproveitamento de um trauma de infância), mas isso entra em conflito com o final mais direto e que sepulta qualquer resquício de mistério. Claramente uma versão prevalece, mas trazendo consigo elementos de outra abordagem, descredibilizando ambas. Particularmente, não acho que Justin Baldoni ou quem quer que tenha sido o autor dessa suposta versão mais sombria, faria algo realmente memorável, mas era de se esperar pelo menos um resultado mais coeso.
Se, como diretor, o californiano é sabotado pela indecisão do roteiro e/ou interferências externas, como ator se mostra ainda mais frágil, pois tem dificuldades para transformar Ryle numa figura minimamente interessante, soando como uma versão mais covarde de Christian Grey. O personagem é um vácuo de carisma (Baldoni é engolido por Lively nesse ponto) e a frieza de sua performance poderia até ser encarada como um traço da psicopatia do neurocirurgião, mas como a roteirista não demonstra interesse em seguir essa ideia, sobra apenas a inexpressividade do intérprete mesmo.
A montagem, inclusive, piora a situação, pois até o melhor momento da projeção (o primeiro encontro entre Lily e Ryle) é atrapalhado pelo desempenho obtuso de Oona Flaherty (do bom Crescendo Juntas) e complementado pelo experiente Robb Sullivan (A Culpa é das Estrelas). Num raro instante em que os diálogos funcionam, o futuro casal tenta se conhecer melhor através de uma dinâmica que contribui para aumentar a tensão sexual, mas brutalmente interrompida por Lily, fazendo uma pergunta fora do tom. O instante em questão tira o espectador do filme e descortina a pressa de Christy Hall em seguir adiante com a história.
É Assim Que Acaba, aliás, frequentemente subestima o próprio público: repare na sequência em que Lily vai a um restaurante e é surpreendida por um homem do seu passado. A identidade do sujeito permanece um mistério até que a câmera revela uma cicatriz marcante em sua mão (traço de um personagem importante do passado da protagonista). Isso já seria o bastante para sabermos de quem se trata (e os sons emitidos pelas pessoas que estavam na sessão comigo confirmam isso), mas a montagem faz questão de incluir um flash com o rosto do cidadão, como se não estivéssemos prestando atenção. E por falar em atenção, é impossível fazer vista grossa para a escolha dos atores que interpretam as versões adolescentes de Lily e um amigo, mas escalar pessoas mais velhas para papéis colegiais é uma prática antiga em Hollywood...
Voltando a aparecer nas telonas quatro anos após o regular No Ritmo da Vingança, Blake Lively não tem a menor dificuldade para fazer de Lily uma moça adorável, inteligente e ambiciosa, justificando a obsessão de Ryle, mas esbarra na falta de profundidade do script. O material até inclui flashbacks e tormentos, mas a roteirista fracassa em conectá-los à personalidade da protagonista, que acaba definida apenas por seus traumas, reforçando a impressão de que jamais chegamos a realmente conhecê-la.
Encontrando espaço para uma cena constrangedora, com a protagonista verbalizando o título do filme, É Assim Que Acaba traduz na tela toda a celeuma que envolveu seus bastidores. Uma pena, pois um tema delicado como o que desenvolve merecia mais cuidado.
NOTA 3
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