Criativo e divertido, "O Conde" faz retrato debochado de Pinochet
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Criativo e divertido, "O Conde" faz retrato debochado de Pinochet


De 1973 a 1990, os chilenos estiveram sob as garras de Augusto Pinochet, cujo regime ditatorial foi instaurado após o golpe de estado que tirou o socialista Salvador Allende do poder. Esse período sombrio já foi vastamente documentado por várias mídias, desde livros e séries a documentários e longas de ficção. Dentre todas essas obras, no entanto, nenhuma chega perto de se equiparar a este El Conde (no original), uma mordaz sátira política com pitadas suculentas do que há de mais clássico no terror vampírico. Essa mistura improvável por si só já rende um mínimo de curiosidade, ainda mais por se tratar do olhar de Pablo Larraín, cineasta chileno acostumado a abordar o tema. Afinal, são dele Tony Manero, Post Mortem e o ótimo No, histórias independentes que traziam um pano de fundo político latente.

Aqui, Larraín não se esquiva de comentar (com a contundência de sempre) sobre as atrocidades cometidas por Pinochet, mas o faz escorado na fantasia. É através da roupagem vampírica, propondo uma releitura fantástica sobre a vida do general, que o realizador consegue construir o alicerce de seu discurso, alimentado por uma farsa política que oscila entre o tragicômico e o humor absurdo. Em ambos os casos, o resultado dificilmente fica abaixo do hilário.

Na trama, narrada por uma figura misteriosa que não deixa de emitir juízo de valor sobre elementos importantes, descobrimos que Augusto Pinochet foi apenas uma identidade forjada, já que ele não era chileno. Nascido na França, Claude Pinoche dedicou-se a lutar várias guerras, sempre combatendo revolucionários. Num belo dia, cansado de ser soldado, decide se tornar comandante. Para isso, encontra no Chile o lugar perfeito para dar vazão aos seus delírios de grandeza, já que a inexistência de um rei o possibilitaria governar como bem entendesse. Bastou a tomada do poder para que o soldado Pinoche desse lugar ao Capitão General da República do Chile, título que ostentaria por 40 anos até sua suposta morte. “Suposta”, pois na visão de Larraín, Pinochet simulou seu falecimento para escapar das autoridades, que já se encontravam no seu encalço com acusações (injustas, de acordo com a narradora) de corrupção e crimes contra a humanidade. Para ele, um Vampiro, seria uma tarefa fácil, pois bastava passar dois meses sem ingerir sangue para perder o pulso e ganhar um aspecto defunto.

Uma vida de enriquecimento às custas do povo que tanto oprimia e uma morte simulada depois, o ex-ditador resolve se mudar para o interior, dividindo um casarão isolado com a esposa e o fiel servo (assassino de Bolcheviques, claro) até que finalmente perde a vontade de seguir vivendo. Programando sua morte, ele recebe a visita de todos os seus filhos com o intuito de repartir seus bens, levando a uma burocracia tão grande a ponto de se fazer necessária a contratação de uma contadora para administrar suas numerosas contas internacionais. Tal profissional, aliás, foi contratada pelos próprios filhos, todos possuindo segundas intenções.

Ao retratar Pinochet como vampiro a associação é mais que óbvia, já que ele “vampirizou” a nação chilena vorazmente por dezessete anos. Seus rebentos, no entanto, carregam o sangue parasita nas veias e usam a tal contadora como uma carta na manga para obter vantagens. O problema é que Lucía, esposa do déspota, também tem seus interesses escusos e a morte do marido certamente não é um deles. A ganância, no entanto, torna-se o objeto de estudo principal da obra, mostrando-se como um catalisador de diferentes espécies de “vampirismo”.

Mas Pablo Larraín, que escreveu também o roteiro (ao lado de Guillermo Calderón, seu parceiro pela terceira vez) não adota o vampirismo apenas como subtexto, trazendo o tema para o literal em sequências que farão a alegria dos fãs de terror, já que o cineasta não demonstra a menor intenção de esconder a violência, abusando do gore em momentos esporádicos, mas marcantes. Ele também demonstra fidelidade aos “princípios vampíricos”, embora utilize a licença poética para ignorar alguns elementos consagrados, como a impossibilidade de andar à luz do dia e dormir em caixões. De resto, o espectador é presenteado com mordidas de pescoço e cenas de voo belissimamente dirigidas.

Aliás, se esses momentos já seriam estonteantes com uma fotografia colorida, em preto e branco ficam ainda melhores. A opção pela escala de cinza faz sentido ao ilustrar a falta de vida daquele universo, especialmente se levarmos em conta o desalmado protagonista. Os voos, diga-se de passagem, merecem créditos por não gerarem estranheza e exibirem efeitos visuais particularmente decentes. O fato de Pinochet usar uma capa esvoaçante só contribui para a beleza estética dessas passagens, com a silhueta do vampiro se movendo pelos ares como se fosse um morcego, remetendo aos escritos lendários (há uma referência explícita a Strigoi, diga-se de passagem).

Por melhor que seja O Conde em todos esses aspectos que mencionei, o destaque fica mesmo para o humor que recheia o texto concebido por Larraín e Calderón, que investem numa acidez absolutamente impiedosa. Nesse ponto, a narradora funciona justamente por adotar uma abordagem inesperada. Aliás, a revelação da identidade da narradora é um dos plot twists mais espetaculares dos últimos anos. Não apenas por fazer total sentido dentro da narrativa, mas principalmente por surpreender, de fato, o espectador.

Destilando desprezo por quase tudo que cerca Pinochet, é ela quem chama o Chile de “cantinho insignificante da América do Sul”, por exemplo, denotando um preconceito que só não é maior que o sarcasmo presente em determinadas frases, cujas inflexões tornam tudo ainda mais divertido, como ao debochar das acusações sofridas pelo protagonista. Essa defesa, inclusive, é corroborada pela família do ex-comandante, que atribui justificativas estapafúrdias para crimes como evasão fiscal e apropriação indébita (“não estavam de acordo com as leis desse país ingrato, mas eram atos legais aos olhos da justiça divina, a única que importa”).

A narradora também revela as preferências do vampiro, descrevendo os diferentes tipos de sangue humano como se fosse uma enóloga falando sobre vinho. Nesse sentido, os ingleses são as vítimas prediletas de Pinochet, pois possuem nas veias uma substância saborosíssima que “carrega uma nota de pele viking com um toque de Império Romano”. Já o sangue sul-americano é detestado por ser “acre” e “exalar um aroma canino”. O fato de ser definido como “sangue de trabalhador” serve como bônus. Nem o próprio descendente de Drácula escapa às observações da misteriosa voz, que compara seu visual ao de "um cafetão em pele de mafioso".

Beneficiando-se de uma trilha clássica que vai ao encontro da mensagem erudita transmitida ao final, quando chega-se à conclusão de que os maiores tesouros de Pinochet são seus livros e documentos históricos (como a edição original do Mein Kampf) e não seu dinheiro, O Conde ainda encontra tempo para discursar sobre o fato de a corrupção se estender às grandes instituições, com a Igreja Católica servindo como alvo.


Depois de obras sóbrias como Neruda, Jackie e Spencer, Pablo Larraín arrisca e acerta em cheio ao apostar na fantasia, fazendo de O Conde não apenas a melhor cinebiografia que já realizou, mas também um de seus melhores filmes.


NOTA 8,5


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