CRÍTICA | "Enterre Seus Mortos"
- Guilherme Cândido

- há 1 dia
- 3 min de leitura
*Crítica publicada durante o Festival do Rio 2024

Cineasta que já se solidificou como uma das mais eloquentes vozes do cinema de gênero nacional, tendo concebido maravilhas como Quando Eu Era Vivo (2014) e Trabalhar Cansa (2011), o Paulistano Marco Dutra volta ao Festival do Rio sete anos após ter vencido o Troféu Redentor com As Boas Maneiras (2017), uma de suas várias parcerias com Juliana Rojas. Engana-se quem pensa que Dutra opera como um músico de uma nota só, pois quem já viu o estupendo O Silêncio do Céu (2016), sabe de seus predicados dramáticos. Enterre Seus Mortos, apesar de induzir o público ao erro de considerá-lo um terror, opera como uma ficção científica. Desta vez, porém, seu talento não aparece tanto quanto em suas obras anteriores.
Quem protagoniza o longa é ninguém menos que Selton Mello, ícone da cinefilia brasileira que dispensa apresentações. É ele quem dá vida a Edgar Wilson (nome composto que os personagens fazem questão de repetir inúmeras vezes), que num futuro distópico onde crianças e animais são afetados por uma misteriosa síndrome, se encarrega de remover os cadáveres que obstam as estradas Brasil afora. Mas Edgar Wilson não está sozinho, já que o padre excomungado Tomás (Danilo Grangheia, o piloto de O Sequestro do Voo 375) está ao seu lado para se certificar de que as pobres almas desencarnadas encontrem o caminho dos céus. A rotina deles toma um rumo inesperado quando Edgar Wilson decide aceitar uma proposta de transportar um corpo clandestinamente.

Dutra tem boas ideias, várias delas, inclusive, sustentam o clima de mistério do primeiro ato. Mas aos poucos elas vão se amontoando e se atropelando, à medida que são descartadas pelo realizador com a mesma energia com que este abraça novos tópicos. Tendo sido gravado numa época em que a Covid-19 ainda pairava sobre nós, fica perceptível o subtexto pandêmico, período em que o fim do mundo teve sua descrença suspensa por mais tempo do que gostaríamos. Com a proximidade do fim, Marco Dutra cria uma alegoria recheada de personalidade e beneficiada por ótimos valores de produção, mas termina sem desenvolvê-la na totalidade.

Na verdade, ele tem o mérito de levantar vários questionamentos ao preparar o terreno durante a primeira metade. O problema é que ele encerra a projeção sem respondê-los. Um pouco de mistério não faz mal a ninguém, mas atirar conceitos sem aproveitá-los deveria ser tipificado como crime hediondo, ainda mais considerando o talento do realizador.

Tecnicamente, porém, a produção é irrepreensível: a fotografia do português Rui Poças (Frankie), por exemplo, surpreende, ao aproveitar tons de verde (cor tradicionalmente associada à morte) durante uma sequência específica e abusa do onipresente vermelho para pintar o céu da fictícia Abalurdes. No restante do tempo, a imagem permanece sem vida, refletindo a atmosfera apocalíptica da história. O paralelo com os urubus, colegas de profissão informais de Edgar Wilson, também é bem construído.

Infelizmente, o filme perde a rotação do motor lá pela metade e quando é feita uma revelação sobre Edgar Wilson, já no terceiro ato, esta chega sem impacto algum, pois é pescada dos escombros de ideias implodidas pelo fluxo desgovernado de pautas levantadas. O que é exatamente “a síndrome”? As pedras fumegantes que caem do céu são expelidas por um vulcão? Qual é a natureza da seita envolvendo a garotinha? Aliás, quem diabos é a garotinha?

Perguntas que se avolumam, mas que são parcialmente ignoradas quando estamos completamente hipnotizados pela performance de Selton Mello, de volta às telonas após um hiato que se aproximava dos oito anos, quando ele estrelou, escreveu e dirigiu o ótimo O Filme da Minha Vida (2017). Quase petrificado na primeira metade, com o rosto sem sobrancelhas inexpressivo diante de qualquer acontecimento, ele ilustra uma transformação assustadora, nos lembrando da falta que faz um talento como o dele.

E no final, o sentimento que fica é o de frustração mesmo, mas em relação ao potencial desperdiçado por Enterre Seus Mortos, um filme bom em apresentar conceitos, mas não tão bom assim para desenvolvê-los.
NOTA 5









