CRÍTICA | 'Quando o Céu Se Engana'
- Guilherme Cândido

- há 1 dia
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Gabriel é um anjo desprestigiado, algo refletido pelas asas diminutas que possui. Nem seu trabalho soa tão importante, já que, enquanto colegas são incumbidos de operarem milagres, por exemplo, ao nosso bravo operário celestial sobra a infame tarefa de evitar colisões de trânsito (despertando a atenção de motoristas distraídos com o celular). Cansado de ocupar a base da hierarquia angelical, ele decide ignorar as ordens de seus superiores e busca uma “alma perdida” para salvar e conseguir uma “promoção”. É quando surge o pacato Arj, documentarista desempregado que faz bicos para garantir o próprio sustento, incluindo pequenos serviços para Jeff, magnata da tecnologia obscenamente rico. A ideia de Gabriel é fazer Arj viver a vida de Jeff por uma semana, fazendo-o perceber que ter dinheiro de sobra não resolveria todos os seus problemas.
Até aí, a estreia do comediante Aziz Ansari (de séries como Parks & Recreation e Master of None) nas telonas como diretor e roteirista, pode soar como uma réplica barata do clássico atemporal A Felicidade Não Se Compra (1946), não fossem dois elementos tão inusitados quanto promissores. O primeiro é o fato de Gabriel ser interpretado por ninguém menos do que Keanu Reeves e o segundo é que Arj, vivido pelo próprio Ansari, frustra os planos do anjo ao adorar a nova vida como milionário, desejando jamais voltar à antiga rotina de trabalhador, uma reviravolta capaz de tirar do espectador as memórias do longa de Frank Capra e jogar os holofotes sobre o texto.

Esse cinismo, por outro lado, não dá muitos frutos, uma vez que Ansari está satisfeito trabalhando de acordo com suas modestas pretensões. Apesar de um ou outro posicionamento mais firme sobre questões contemporâneas (nesse ponto, inteligência artificial está se tornando um clichê), o realizador não se esforça muito para transmitir empatia e pregar pela igualdade, dando a Good Fortune (no original), uma cara de produção feita sob medida para fisgar espectadores casuais menos exigentes e deve fazer sucesso em catálogos de streaming e exibições em TV aberta.

Mas quando a subversão da máxima “o dinheiro não traz felicidade” finalmente começa a ruir, é Keanu Reeves quem resgata a trama dos escombros, quebrando a expectativa do público ao surgir em cena com o mesmo visual que ostenta como o implacável assassino John Wick. A pureza inocente que o libanês adota como pilar de sua composição é a mesma transmitida como o co-protagonista da franquia Bill & Ted, mas acompanhada de um trunfo inesperado. Afinal, se a famosa inexpressividade do ator é bem aproveitada em filmes de ação, através da interpretação de figuras frias e, por vezes, impiedosas, aqui ela é potencializada por uma clara e manifesta falta de timing cômico. E essa combinação, por incrível que pareça, é o que transforma Gabriel no personagem disparadamente mais divertido e fascinante da história.

A humildade de Reeves (outra de suas características famosas) permite ao anjo renegado arrancar boas gargalhadas, por exemplo, ao surgir de avental e fumando durante o intervalo do trabalho como lavador de pratos de uma lanchonete. Da mesma forma, não é tarefa fácil deixar de sorrir ao vê-lo se deslumbrar enquanto prova iguarias mundanas como hambúrgueres e milkshakes (o “uau” é a cereja do bolo). Sem se levar a sério, o eterno Neo de Matrix (1999) consegue se destacar em meio a comediantes talentosos como Aziz Ansari e Seth Rogen, que se limitam a repetir composições já testadas. Se o primeiro faz bem o tipo comum, o trabalhador médio em busca do sonho americano, Rogen parece criar uma alternativa menos espirituosa e mais superficial do produtor Matt Remmick da espetacular (e recordista de Emmys) O Estúdio. Os três, aliás, exibem uma química tão boa que ficamos ansiosos por mais oportunidades de vê-los juntos. Pena que Ansari não percebeu o potencial do material que tinha em mãos e ficamos com aquele gostinho de quero mais.

Mastigando a moral da história do jeito mais panfletário possível nos instantes finais, Quando o Céu Se Engana poderia facilmente sucumbir à natureza derivativa e preguiçosa de seu script, mas além de ser irresistivelmente simpático e bem-intencionado, há um Keanu Reeves pronto para salvar o dia mais uma vez, embora não do jeito esperado.
NOTA 6









