Festival do Rio 2018 | Dia 6
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2018 | Dia 6

No sexto dia deste Festival, foram quatro filmes completamente diferentes entre si.


Dois italianos (o romance Entre Tempos e a comédia O Caravaggio Roubado), um francês (o drama A Prece) e um nacional (Morto Não Fala, com Daniel de Oliveira). Infelizmente, nenhum à altura de Capharnaüm ou A Casa que Jack Construiu, os melhores até agora.


Vamos às críticas:


Entre Tempos (Ricordi?) | Itália


Em Roma, Lui é um sujeito depressivo e que anda pelos cantos procurando alguém para ouvir seus lamentos. Lei é uma mulher vibrante, de sorriso fácil e que mal consegue lembrar de um momento ruim de sua vida. Num belo dia, os dois acabam se conhecendo numa festa e, no melhor estilo “os opostos se atraem”, se apaixonam.


Essa história nós já vimos um milhão de vezes, é verdade. Algumas obras, mesmo com uma premissa tão superficial como essa, conseguem resultado acima da média, graças a abordagem que é adotada. Não se trata do assunto a ser abordado, mas como ele é abordado. O Cinema sempre foi assim. O primeiro diferencial de Entre Tempos, no entanto, é utilizar esse clássico ponto de partida para construir uma história sobre a natureza das lembranças.


Inicialmente, esse elemento rende pontos positivos, como a ideia de estruturar todo o filme em cima das lembranças, estabelecendo uma lógica de montagem que segue de perto uma simulação do fluxo de lembranças. Assim, quando Lui observa sua casa antiga e lembra de sua infância, o filme de Valerio Mieli imediatamente corta para uma passagem da infância do personagem. Há vezes que o ato de lembrar pode levar mais que um minuto, mas às vezes, pode levar uma fração de segundo, gerando apenas um flash na tela.


Esse artifício engenhoso de montagem rende bons frutos no primeiro ato, quando ainda estamos conhecendo Lui e Lei e mal nos importamos com suas divagações sobre a natureza das lembranças e seus reflexos na vida. Lui, por sinal, é completamente dominado por suas lembranças, o que o leva a uma verdadeira obsessão, adotando um modo de viver que se guia justamente por elas.


Não é à toa que o sujeito passa o tempo todo falando da memória e o quanto isso impactou na sua vida. E quando escrevo “o tempo todo”, não é exagero, já que nem mesmo durante o ato sexual o rapaz é capaz de se permitir um momento livre de seus pensamentos nostálgicos. “As coisas são bonitas porque acabam”, diz ele em certo momento, apenas para ser rebatido por Lei, “Não, elas são menos bonitas porque acabam”.


Lei, por sua vez, demora a perceber o relacionamento cáustico que possui com Lui, que aos poucos vai contaminando-a com seu ar triste e melancólico. Nesse aspecto, as performances do casal soam acertadas: enquanto o astro italiano Luca Marinelli (Meu Nome é Jeeg Robot) investe numa composição que se aproveita do visual desgrenhado, com direito a olheiras e roupas negras para criar um homem que desperdiça a vida dando importância demasiada a recordações, Linda Caridi não tem dificuldades para usar sua simpatia a favor de Lei, concebendo uma mulher radiante, mas que não deixa de usar sua inteligência para rebater as afirmações do namorado.


Infelizmente, tudo o que Entre Tempos tem a oferecer se esgota ainda no primeiro ato, evidenciando que o roteiro não se sustenta num longa-metragem. A montagem, que certamente demandou um trabalho hercúleo, cansa, assim como a química do casal vai se diluindo com a dinâmica previsível e sem nuances. Para piorar, o diretor Valerio Mieli tenta incluir passagens supostamente artísticas, mas falha em atribuir significados, resultando num esforço que soa apenas pretensioso.


O destaque fica por conta da fotografia, belíssima ao retratar uma Itália de múltiplas paisagens, desde campos enevoados até praias paradisíacas. A trilha sonora, embora nada fora do normal, não compromete a narrativa, complementando as imagens com extrema graça em seus melhores momentos. Uma pena que o filme dure intermináveis 106 minutos. Como curta-metragem tinha tudo para ser magnífico.


NOTA 4,5


 

A Prece (La Prière) | França


O jovem Thomas (Anthony Bajon) é viciado em heroína e, após uma overdose (e sem ter parentes próximos) acaba sendo mandado para um centro de reabilitação católico ao pé das montanhas do centro-leste francês. Lá, ele acaba descobrindo que há todo um universo povoado de pessoas interessadas em ajudar, querendo seu bem-estar. Vivendo como alguém desacostumado a gentilezas, Thomas experimenta um choque de realidade que aos poucos vai introduzindo a Fé em sua vida.


Oferecendo uma performance absolutamente magnética, Anthony Bajon confere diversas camadas a Thomas, soando inocente e de coração bondoso, ao mesmo tempo que rude e imaturo em suas ações (e seu olhar cortante muitas vezes é o que basta para sentirmos sua aflição). Com dificuldades em resistir à tentação das drogas, Thomas inicialmente reluta e até foge daquela que se apresenta como uma situação completamente nova, o que o cega para as virtudes do centro. O roteiro merece créditos pelo elaborado arco dramático de Thomas, mas é mesmo Bajon que torna o personagem tão rico e fascinante.


Retratando o centro de reabilitação como um local de recuperação física, psicológica e, principalmente, espiritual, A Prece não economiza nas frases panfletárias, mas coloca o próprio Thomas para combatê-las criticando e até ridicularizando-as. Inteligente, esse artifício serve para desarmar qualquer interpretação tendenciosa. Mesmo com evidente inclinação religiosa, ao menos a produção permite contestações.


Porém, no terceiro ato, a dramaturgia e a espiritualidade entram em choque, quando num incidente crucial para o arco dramático de Thomas, o roteiro abre espaço para o intangível, possibilitando uma solução sobrenatural que simplesmente tira a credibilidade de uma jornada que tinha tudo para ser finalizada com sucesso. Assim, ao descambar de vez para o lado religioso, a produção afasta os méritos de Thomas, atribuindo sua recuperação a fontes externas.


Apesar de enfraquecer seu protagonista em seu terço final, A Prece é um filme que merece elogios pela forma sempre econômica com que fornece informações ao espectador, evitando diálogos expositivos organicamente, como na primeira cena de Thomas. A trilha sonora também ganha pontos por optar não comentar a narrativa, atuando de forma discreta e apenas pontual.


Beneficiando-se de simbolismos que enriquecem a narrativa (a ideia de trabalhar para se redimir, o buraco que deve ser cavado ou a caminhada pela montanha), A Prece funciona melhor quando a aproximação com o intangível não passa do flerte, e mesmo quando se entrega a canções de louvor, não chega a soar tão artificial como em suas escolhas finais, quando a religião interfere fatalmente no melhor elemento do roteiro: seu protagonista.


NOTA 7


 

O Caravaggio Roubado (Una Storia Senza Nome) | Itália


Datada de 1609, a obra La Natività, de Caravaggio, estava exposta numa capela de Palermo, na Itália, até ser roubada em 1969. Mesmo com uma vasta lista de suspeitos, o crime jamais foi solucionado e a pintura permanece desaparecida até hoje. Inspirando vários filmes ao redor do mundo, o caso acaba de ganhar uma versão “caseira” com O Caravaggio Roubado (ou Una Storia Senza Nome, no original).


Na trama, escrita e dirigida por Roberto Andò (As Confissões), Valeria (Micaela Ramazotti) é a secretária de um poderoso produtor de Cinema que atua como escritora fantasma de um famoso roteirista nas horas vagas. Um dia, ela recebe uma ligação misteriosa de alguém pronto para contar uma história perfeita para ser levada às telas: a do famigerado Caravaggio roubado.


Ora satírico, ora partidário do suspense, o roteiro de Andò se equilibra com extrema dificuldade, logrando êxito pleno apenas no tom farsesco de sua história, que oportuniza o humor e gera um clima agradável. O Caravaggio Roubado sempre funciona melhor quando flerta com a caricatura, divertindo com o dúbio personagem gago ou a versão idosa de O Santo.


Sem se preocupar em dar maiores explicações sobre seus personagens, o filme mergulha de cabeça na embalagem barroca corroborada pela fotografia, adotando uma trilha sinfônica que confere uma atmosfera erudita à narrativa. Por outro lado as redundâncias do script menosprezam a inteligência do espectador, como ao apresentar breves flashbacks ao final, assegurando que as reviravoltas sejam devidamente entendidas.


Reservando algumas reviravoltas previsíveis e outras completamente desnecessárias, a história se permite ainda pequenas provocações ao mundo cinematográfico, como ao colocar um personagem afirmando “detestar” o cineasta dinamarquês Lars Von Trier ou ao exibir, no escritório de um personagem, um imenso letreiro luminoso com a frase “O Cinema é uma invenção sem futuro” de Louis Lumière.


O elenco é encabeçado por uma Valeria Ramazotti irreconhecível, encarnando uma espécie de versão italiana de Jamie Lee Curtis ao surgir de cabelos curtos e emulando trejeitos da atriz americana em True Lies. Enquanto isso, o veterano Renato Carpentieri demonstra estar se divertindo na pele de um super policial que mais parece um espião. Já Alessandro Gassman (vilão principal de Carga Explosiva 2) é pouco aproveitado pelo roteiro, mas aproveita cada segundo de tela com seu charme habitual.


Escorregando feio no suspense (note o mistério bobo com uma câmera escondida no clímax), mas compensando com uma trama rocambolesca que, se não chega a provocar gargalhadas, ao menos deve servir para arrancar sorrisos do espectador. Pode não parecer muito, mas pelo menos não representa um embaraço.


NOTA 6


 

Morto Não Fala (Idem) | Brasil


Não é de hoje que o Cinema Brasileiro comercial carece de obras do gênero terror. Nem parece que vivemos no país de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, o legítimo rei do terror brasileiro. É uma pena que somente de vez em quando surja alguém para desafiar os padrões, como foi o caso de Tomás Portella e seu Isolados (2014) e, mais recentemente, J.C. Feyer com O Rastro (2017). Portanto, quando Morto Não Fala foi anunciado, muitos acompanharam sua produção com um misto de ansiedade e receio.


Felizmente, o diretor Dennison Ramalho, estreante em longas, mas experiente como roteirista, parece ter entendido todos os mecanismos do gênero, concebendo uma história que faz o uso perfeito do terror para discutir um tema maior, no melhor estilo George A. Romero. Aqui, Ramalho discute a violência urbana, dando voz a um protagonista residente da periferia e cujo trabalho é pouco representado no Cinema.


Daniel de Oliveira é quem interpreta o protagonista, Stênio, que faz plantão num IML de São Paulo. Por outro lado, ao contrário do que sua vida banal possa sugerir, Stênio tem o dom de se comunicar com os mortos, conseguindo ouvir e ser ouvido pelos cadáveres que recebe no necrotério. Mas após descobrir estar sendo traído por sua esposa, Odette (Fabiula Nascimento), resolve quebrar a regra dos mortos e usar uma informação obtida do além para jurar de morte Jaime (Marco Ricca), o ricardão.


Evidentemente, Morto Não Fala inclui quase todas as convenções do Terror, investindo em vultos cruzando a tela e os famigerados sobressaltos na trilha sonora, mas Dennison Ramalho vai além e abraça o trash, conferindo certa precariedade a alguns aspectos da produção, principalmente nos bizarros efeitos visuais utilizados para a animação dos cadáveres. Além disso, o roteiro simplesmente escancara lacunas importantes, como ao mostrar os filhos de Stênio frequentemente sozinhos ou no hilário momento onde um morto se levanta para fazer uma pergunta e é respondido por outro funcionário do IML, que reage com naturalidade (!).


Nas entrelinhas, porém, o roteiro de Ramalho busca uma reflexão acerca da violência urbana, introduzindo facções criminosas e aproveitando o sensacionalismo da mídia. Complementando, há também um pertinente comentário sobre o machismo que toma conta da trama a partir dos motivos egoístas de Stênio, cuja culpa pela morte da esposa jamais é negligenciada pela história, o que não deixa de ser admirável.


Stênio é vivido por um Daniel de Oliveira (Aos Teus Olhos) que não economiza nos olhos arregalados e nos arroubos de fúria, destacando-se nas sequências de pesadelo, ao passo que Fabiula Nascimento compensa a falta de carisma na fase “viva” de Odette com uma forte presença “fantasmagórica” corroborada pelo bom trabalho da maquiagem.


Maquiagem esta que ajuda a construir algumas sequências realmente assustadoras. Afinal, quando não está apelando para o som alto da trilha sonora, Morto Não Fala também é capaz de provocar arrepios, como nos momentos a la Atividade Paranormal e às aparições de Odette. Já o design de som representa um desserviço, tanto nos diálogos (abafados) como nas set-pieces. Seguindo por esse caminho, a trilha sonora surge apropriadamente irregular, constituindo-se de três ou quatro estilos completamente distintos entre si.


É uma pena portanto que a história jamais abrace o trash de vez: há momentos marcantes como o do pesadelo com linhas banhadas em cerol ou toda a sequência da possessão de Odette no terceiro ato, mas, no geral, o filme é prejudicado por um estilo que só introduz o trash homeopaticamente e a partir do segundo ato.


Funcionando como terror ao ser responsável por algumas das melhores sequências do gênero brasileiro nos últimos anos, Morto Não Fala também abusa do gore para incrementar seus sustos, resultando numa experiência satisfatória e que transmite esperança para os amantes do bom e velho terror, seja trash ou não.


NOTA 7

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