Festival do Rio 2018 | Dia 9
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2018 | Dia 9

Atualizado: 29 de jul. de 2022

O Festival do Rio 2018 chega ao seu nono e penúltimo dia já deixando saudades. O curioso é que vi o melhor filme dessa edição e também vi o pior.


Enquanto Infiltrado na Klan representa o retorno triunfal de Spike Lee, Cano Serrado revela-se uma grande decepção, principalmente por se tratar de um filme de gênero nacional. Também assisti a uma bela produção sérvia protagonizada por uma criança portadora de paralisia cerebral parcial.


Shade: Entre Bruxas e Heróis (Zlogonje) | Sérvia


Jovan é um garoto comum: ele vai para a escola todos os dias, tem uma família amorosa e vive brincando em seu quarto. Mas é em sua mente que a magia acontece, onde é capaz de viver intensas aventuras como o alter-ego de Shade, um super-herói implacável. Como eu disse, Jovan é um garoto comum, mas que sofre de paralisia cerebral parcial.


Só de dar voz a uma criança portadora de paralisia cerebral, o sérvio Shade: Entre Bruxas e Heróis já mereceria aplausos, mas sua maior virtude é a forma como lida com a vida de seu protagonista. Dotado de uma imaginação pra lá de fértil, Jovan vive dividido entre dois mundos: o da sua imaginação e o real. Claro que a fantasia lhe cai melhor, pois nela não há problema sem solução e, obviamente, não há nada comparável ao fato de ser um super-herói, sejamos honestos. Mas a realidade, apesar de dura, não é retratada com sensacionalismo pelo filme.


Há pinceladas sobre bullying, com Jovan sendo chamado de aleijado algumas vezes, e só. O diretor Rasko Miljkovic não está interessado no melodrama fácil e nem em usar a deficiência como forma de humor, optando por uma abordagem que prioriza a amizade entre Jovan e a menina Milica. Sem precisar de cuidados especiais, a menina serve como um contraponto eficaz a Jovan, graças ao curioso contraste que se forma: Jovan vive a dura realidade de caminhar com dificuldade, mas mora num lar aconchegante com seus pais amorosos, ao passo que Milica, sem qualquer tipo de problema físico ou psicológico, mora num lar diametralmente oposto em atmosfera.


Morando de favor com a mãe na casa da avó, Milica aguarda, com expectativa, o momento de reconciliação de seus pais, que estão separados. Aliado à falta de afeto, essa apreensão transforma a garota numa figura amarga por fora, mesmo que borbulhante por dentro. É nesse cenário que sua imaginação acaba aflorando, ao enxergar a atual namorada do pai (estopim evidente da separação) como uma bruxa que o enfeitiçou.


Com uma fantasia dessas em mente, Jovan surge como o parceiro perfeito para a aventura de libertar seu pai das garras da maligna bruxa. O problema é que a realidade é bem mais complicada e ela vai descobrir isso da pior forma. É quando ela percebe que a vida pode ser bem menos dolorosa na companhia de um bom amigo, que lhe abre os olhos para a nova realidade.


Essa dinâmica entre os jovens atores é conduzida com extrema leveza e graciosidade, muito em função das ótimas performances do casal: Mihajlo Milavic compõe Jovan como uma criança adorável, sempre gentil, investindo numa fala entre dentes que só ratifica sua natureza, absorvendo a fragilidade de seu corpo não como uma muleta dramática. Embora ainda muito jovem, Milavic exibe uma presença de cena de fazer inveja a muitos marmanjos tarimbados por aí, brilhando até mesmo nas sequências mais intensas como o momento onde Jovan decide subir uma escada sem ajuda. Já Milica é vivida por uma Silma Mahmuti que faz bem o papel de durona, deixando transparecer que por trás daquela fachada amarga, esconde-se uma criança de enorme coração.


A química entre os dois é inegável e compensa os efeitos visuais rudimentares da produção, visivelmente de baixo orçamento. Mesmo assim, se os efeitos não chegam a comprometer, pequenos deslizes atrapalham o envolvimento do espectador. Ao cair de costas, por exemplo, Jovan mostra o braço machucado num ponto onde seria impossível haver tal ferimento, enquanto que a câmera, em certos momentos, move-se muito lentamente, como ao demorar a focar Jovan em seu quarto.


Utilizando a inocência das crianças como âncora emocional, Shade: Entre Bruxas e Heróis se afasta do tentador clichê de construir uma história de redenção, optando por construir uma fábula protagonizada por um herói improvável. Embalado por uma trilha melódica e nada manipuladora, Zlogonje, no original, é uma pérola aguardando ser descoberta.


NOTA 7,5


 

Cano Serrado (Idem) | Brasil


Toda vez que o Cinema Brasileiro vira pauta numa conversa, seja ela formal ou informal, comenta-se sobre a falta de investimento, criativo e/ou financeiro, em filmes de gênero. O terror, por exemplo é pouco explorado, assim como os filmes de ação, normalmente acomodados no famigerado subgênero dos filmes de favela. Ultimamente, temos visto avanços nesse sentido, com obras como O Rastro e o recente Morto Não Fala tentando recuperar o horror nacional. Cano Serrado até representa uma legítima tentativa de reinvenção do cinema de ação nacional, mas assim como em seu Federal em 2010, o cineasta Erik de Castro passa a impressão de estar longe de ser a pessoa certa para conduzir essa renovação.


Abordando a violência constante nas estradas tupiniquins, Erik esboça um comentário sobre a crescente sensação de insegurança por parte de quem faz viagens interestaduais, especialmente caminhoneiros e motoristas de ônibus de turismo. Aproveitando esse contexto, a história acompanha Lucas (Jonathan Haagensen) e Manuel (Paulo Miklos) uma dupla de policiais que viaja à paisana escoltando um ônibus rumo a uma igreja evangélica. Problemas surgem no meio do caminho e Lucas se vê numa emboscada, levando um tiro e sendo levado por policiais que o confundem com um bandido local.


Apostando preguiçosamente em estereótipos, o roteiro mostra Lucas como o clássico policial do bem, ostentando valores nobres que frequentemente o colocam em rota de colisão com os colegas corruptos e gananciosos. Manuel é a personificação do típico malandro politicamente incorreto, do tipo que trai a esposa com orgulho e se vê à vontade com a corrupção. A boa dinâmica entre os dois, fruto do carisma e do talento de ambos (principalmente Haagensen) poderia render um filme inteiro, mas Erik de Castro torce o nariz para isso.


Sua intenção é clara: fazer um filme de ação protagonizado por homens e para homens. Com isso, o roteiro não economiza ao pintar as figuras do filme como seres machistas e misóginos, que andam de nariz empinado e sempre prontos para sacar uma arma carregada. Cuspes e palavrões estão inclusos no pacote.


O diretor investe tão pesadamente nessa embalagem machona que Cano Serrado ganha ares de paródia, ficando difícil conter o riso sempre que o personagem de Milhem Cortaz entra em cena, por exemplo. Com a obrigação de colocar um cigarro (apagado) na boca toda vez que surge em cena, Cortaz faz questão de frisar a virilidade de Rico, incluindo caras de mau e uma inexplicável ideia de dobrar uma das mangas (curtas) de sua camisa, exibindo os músculos.


Outro exemplo de caricatura é o Sargento Sebastião, encarnado por Rubens Caribé como um aspirante a Capitão Nascimento, mas sem a força, o carisma e a complexidade do mais recente ícone do Cinema Nacional. Misógino e com uma moral flexível (para dizer o mínimo), Sebastião é adepto também da tortura. E o que dizer do delegado Raimundo, encarado como um nordestino incapaz de fugir do alívio cômico (consciente ou não) e que ainda protagoniza um chilique absolutamente inacreditável?


Esse chilique, vale ressaltar, é o momento menos embaraçoso de Cano Serrado e, acredite, são vários. Por exemplo, uma moça toca o interfone de uma casa e a estranheza já começa com o som de campainha que ecoa. Para piorar, a dona da casa surge implacavelmente já abrindo o portão para a desconhecida e ignorando até mesmo seu cachorro de estimação, cuja fuga parece não importar. Em outra sequência, temos o clássico waterboarding, técnica de tortura que consiste em simular afogamento. O problema é que no filme, a quantidade ínfima de água jamais desperta, sequer, a ilusão de eficiência, além de podermos ver que grande parte é desperdiçada.


Já em relação aos personagens, há o policial que fecha os olhos ao atirar, o outro que não suporta o coice da arma e, meu favorito, aquele que atende o celular com uma truculenta dedada no centro do aparelho. Todo esse material já seria suficiente para a produção de um bom trash ou uma paródia mordaz, mas Erik de Castro insiste em se levar a sério, o que pode ser evidenciado, também, através da trilha sonora, que consiste num rock pesado quase ininterrupto, intrusivo em vários momentos e sem nuances.


Porém, há passagens em que fica difícil de entender a intenção do cineasta. Traços ambíguos impossíveis de determinar se foram introduzidos conscientemente, como ao construir Sebastião proclamando-se como um “homem de fé”, citando a bíblia e justificando a inversão de valores como “até papa nazista já tivemos”. O mesmo pode se dizer a respeito da falta de inteligência dos policiais coadjuvantes, que chega ao ápice numa sequência onde decidem se reunir no meio de um local público para tratar de um assunto claramente ilegal. E quanto à decisão de inverter certas nomenclaturas, como em “Polícia Municipal” e “Guarda Militar”?


Falando sobre a direção, Erik de Castro demonstra um apego quase obsessivo a planos aéreos, adotando-os sem a menor justificativa (e confesso que passei todo a projeção tentando adivinhar o momento em que a câmera iria ‘subir’). Além disso, ele toma decisões questionáveis quanto ao posicionamento de câmera, tornando algumas cenas incômodas, como ao fixar a lente no capô de um carro (gerando trepidação) ou ao dispensar o tripé em determinados diálogos. Isso para não mencionar os péssimos close ups supostamente dramáticos.


O único ponto genuinamente positivo de Cano Serrado, porém, reside somente no terceiro ato, quando um confronto de grandes proporções é filmado no melhor estilo faroeste, com direito a plano-detalhe nos olhos, plano americano enfatizando a arma na cintura, travellings circulares e a irresistível expectativa de quem vai atirar primeiro. Infelizmente, essa sequência é rápida e seguida de um plano onde uma professora do ensino fundamental escreve as palavras “ética” e “moral” num quadro negro (acredite se quiser), literalmente explicando para o público sobre as consequências de determinadas subtramas.


Honestamente é difícil de acreditar que Erik de Castro seja tão tolo ao tomar algumas das decisões descritas acima. Por isso, prefiro crer que seu maior erro foi não abraçar completamente a autoparódia.


NOTA 1

 

Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman) | Estados Unidos


Iniciando a projeção com um monólogo racista recheado de ódio, Infiltrado na Klan tem em Alec Baldwin o cartão de visitas da história, que dá sinais de seriedade e densidade dramática. Mas ao vermos Baldwin gaguejar e se irritar com seus erros frequentes percebemos que o humor será a principal ferramenta para retratar o preconceito racial da sociedade estadunidense da década de 70. O que Spike Lee faz, na verdade, é mostrar que, infelizmente, não houve evolução e os Estados Unidos (assim como o restante do mundo) continuam a oportunizar a intolerância racial como forma institucionalizada de pregar o ódio.


O roteiro acompanha Ron Stallworth (John David Washington, filho de Denzel) um policial negro que além de conviver com o preconceito racial em várias camadas, recebe a missão de infiltrar-se na Ku Klux Klan, entidade supremacista com quem mantém contato apenas telefônico. Para comparecer às reuniões, Ron envia seu parceiro Flip (Adam Driver, o Kyle Ren de Star Wars), caucasiano, mas que esconde sua origem judia dos adeptos supremacistas. Essa história poderia facilmente ser encarada como absurda, não fosse o "detalhe" de ser baseada nos fatos reais retratados num livro de autoria do próprio Ron Stallworth, matéria prima para o roteiro dirigido por Spike Lee (Malcolm X).


O que diferencia BlacKkKlansman (no original) de outras obras sobre o racismo, é a intenção de pregar a igualdade ao invés de focar apenas no viés revanchista por parte dos negros. Aqui, os brancos não são retratados como caricaturas unidimensionais e malignas, pelo contrário. Muitos, como Flip, aderem à causa negra sem hesitar, contribuindo para a missão de Ron. Algo que Barry Jenkins não soube equilibrar em seu novo filme, Se a Rua Beale Falasse.


Evitando qualquer traço de violência ou subterfúgio vingativo, o roteiro investe no deboche para ridicularizar os membros da KKK e seus simpatizantes. E esses momentos, carregados de ironia e acidez, revelam-se os mais divertidos da produção, como as inúmeras conversas telefônicas em que Ron passa-se por caucasiano ao falar com os supremacistas, que são encarados como os tolos que são.


Normalmente, critica-se o humor que utiliza uma minoria como escada, mas os membros da KKK, despidos de qualquer sinal de empatia ou humanidade, são a exceção, transformando-se em alvos deliciosamente fáceis. Como lidar com alguém que defende uma bíblia somente para brancos, encara negros como macacos e prega o extermínio como forma de ‘purificar’ a nação estadunidense? Caricaturas prontas, o roteiro mal precisa se esforçar para extrair humor.


John David Washington encarna Ron como um verdadeiro símbolo do Blaxploitation, pronunciando frases de efeito e agindo com a desenvoltura de um personagem concebido para ser cool (isso para não mencionar o figurino de cores fortes). Embora não tenha a virilidade que o papel demanda, Washington possui um olhar honesto que traz credibilidade ao papel, enfatizando o lado humano de Ron acima de tudo. Já Adam Driver investe numa composição mais contida, surpreendendo nos momentos mais cômicos com o generoso auxílio do afiado texto.


Alcançando a catarse com discursos distintos entre si, mas igualmente poderosos, como aquele feito por Kwame (Corey Hawkins, de Kong: A Ilha da Caveira) numa universidade e o acerto de contas entre Ron e o líder da KKK por telefone, Infiltrado na Klan encerra-se com chave de ouro ao mostrar imagens reais de manifestações racistas e brigas generalizadas, (efeitos do ódio alimentado pela sociedade), chegando ao ápice da coragem ao mostrar uma imensa bandeira dos Estados Unidos de cabeça para baixo, com o azul e o vermelho substituídos pelo preto e o branco. Isso logo depois de uma cartela com a seguinte mensagem “Não há lugar para o ódio”.


Forte, envolvente, cínico, ágil, ácido e divertidíssimo. Adjetivos não faltam para ilustrar o quão espetacular é Infiltrado na Klan. E a impressão que fica ao final é que não existe cineasta no mundo que aborde o racismo como Spike Lee. Só ele é inteligente o bastante para responder ao ódio através do humor. E é uma proeza fazer alguém rir de sua própria vergonha. Que a Academia não ouse esnobá-lo dessa vez.


NOTA 9,5

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