Festival do Rio 2022 | Dia 2
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2022 | Dia 2



Uma Canção de Amor/Uma Noite no Lago (A Love Song, 2022) | Estados Unidos



O cinema independente é especialista em produzir histórias intimistas focadas em apenas um personagem. Recentemente, por exemplo, Nomadland chegou a faturar os principais Oscars da cerimônia retrasada. Uma Canção de Amor, aliás, divide algumas semelhanças com aquele filme, que contava com uma mulher na casa dos sessenta anos abandonando a cidade grande para viver como uma nômade a bordo de sua van enquanto percorria o oeste estadunidense.


Iniciando a projeção com tomadas arrebatadoras de uma região do Colorado, Uma Canção de Amor logo nos apresenta a Faye (Dale Dickey), que está vivendo tranquilamente em seu trailer à beira de um belo lago. Com uma rotina pacata que não vai muito além de se alimentar dos lagostins pescados no próprio lago ao som de um velho rádio, seu entretenimento se resume a dois livros, um sobre como identificar as estrelas e galáxias e outro sobre pássaros norte-americanos. Mais tarde descobrimos que ela está aguardando a visita de uma antiga paixão de sua juventude, embora não tenha recebido a confirmação.


Mais conhecida por papéis secundários em superproduções (Homem de Ferro 3, Super 8) e por interpretar vilãs em filmes menores (A Qualquer Custo, Inverno da Alma), Dale Dickey tem a rara oportunidade de encarnar uma protagonista, oferecendo uma performance íntima e aprazível e provando que é capaz de segurar um filme praticamente sozinha. Carregando no rosto marcas de expressão que sugerem uma vida dura, Faye parece já ter passado por muita coisa, embora não saibamos exatamente o quê. Visivelmente cansada, ela encontra no tranquilo interior do Colorado um refúgio perfeito, mas não esconde a ansiedade pela visita do amigo.


Interpretado pelo grande Wes Studi, o Eytukan de Avatar e o Magua de O Último dos Moicanos, Lito é mais aberto, conquistando Faye com o cavalheirismo e os modos simpáticos que revelam um homem que vive à moda antiga, com valores que parecem perdidos no passado. Isso não o impede de estabelecer uma conexão imediata com ela, principalmente graças ao evento traumático que possibilitou o encontro entre os dois. Essa revelação, aliás, torna o relacionamento do casal ainda mais rico, proporcionando os momentos mais tocantes da projeção.


Extremamente agradável, Uma Canção de Amor é um daqueles filmes que contagiam o espectador com a energia positiva que emana, exibindo uma atmosfera aconchegante e tranquila que conquistará até o mais sisudo dos espectadores. Embora tenha espaço para, sutilmente, abordar o drama que envolve o passado dos personagens centrais, a direção do estreante Max Walker-Silverman jamais abandona a leveza, permitindo-se até mesmo pequenos alívios cômicos que surgem organicamente de personagens secundários. Aliás, é impressionante como a honestidade parece habitar cada figura que interage com Faye, com destaque para uma família que gentilmente pede um favor a ela.


Inteligente ao construir um subterfúgio que permite a escolha de músicas que servem ao mesmo tempo como comentários sobre situações e para evocar elementos de seu discurso (“o rádio sempre toca a música certa, mesmo que a gente não entenda isso na hora”, explica Faye em certo instante), Uma Canção de Amor oferece uma das experiências mais aprazíveis de 2022, pena que dura pouco mais de 80 minutos.


Observação: O Festival do Rio apresentou o filme como “Uma Canção de Amor”, título que também consta na legenda oficial, mas “Uma Noite no Lago” tem sido adotado por sites especializados e plataformas de streaming.


NOTA 8


 

Os Harkis (Les Harkis, 2022) | França/Argélia


Termo designado para se referir aos argelinos que aceitaram lutar ao lado do exército francês, os harkis eram muito mais do que simples peões nas sangrentas batalhas que foram travadas nos campos desérticos do país africano. Geralmente coagidos ou chantageados por franceses, eles iam para a guerra principalmente para salvarem a própria família, arriscando a vida no campo de batalha e a reputação em caso de retorno, pois eram marginalizados em seus próprios bairros.


Até mesmo crianças sofriam por serem filhos de harkis, algo ilustrando com perfeição por Os Harkis, filme escrito e dirigido pelo veterano Philippe Faucon. Ambientado em 1959, quando as cidades argelinas eram tomadas por manifestações que clamavam pela independência da Argélia frente a França, a produção procura retratar um outro lado da Guerra que só viria a acabar, de fato, em 1962, com os argelinos finalmente conquistando a tão sonhada descolonização.


Indo direto ao ponto desde a primeira cena, Os Harkis é um filme que seria muito mais eficiente como documentário, já que sua maior força reside justamente na abordagem quase documental que adota. Os dados apurados e apresentados de forma crua logo na cartela que inicia a projeção, prenunciam um longa carregado de drama, mas o estilo de Faucon entra em conflito com o lado potencialmente emotivo do projeto. A ausência de trilha sonora, a câmera quase sempre única e acompanhando de perto os personagens conferem um realismo cru e hiper-realista que não dá espaço para floreios artísticos.


Assim, a película, apesar de bem produzida, sofre com uma estrutura irregular na qual fica claro ao espectador que o realizador só estava seguro mesmo em relação ao primeiro e ao terceiro atos (justamente os mais propensos à intensidade), fazendo do arrastado segundo ato um aglomerado de cenas sem nuances e que prejudicam o ritmo do filme, algo que a montagem morosa faz questão de ressaltar. O cotidiano dos soldados, concebidos com alarmante apatia, deve provocar uma parcela considerável de bocejos por parte do público.


Além disso, a frieza com que o roteiro trata os personagens destrói qualquer chance de conexão com o espectador, mesmo diante de situações extremas. E se não nos importamos com os personagens, algo fundamental especialmente num filme de guerra, os poucos confrontos espalhados pela história se tornam meros exercícios de estilo, onde o ótimo design de som se sobressai, com destaque para a sequência em que os harkis emboscam um pequeno grupo de soldados franceses numa gruta. Já a montagem parece fazer de tudo para evitar o envolvimento do espectador, investindo em cortes secos que corroboram a falta de energia com que o longa sofre.


Com isso, sobra a Os Harkis apenas o contexto histórico, que poderia muito bem sustentar um belíssimo documentário, mas que aqui sofre com o desinteresse de seu realizador em preencher lacunas emocionais. Uma pena, pois sem a necessidade de construir uma narrativa ficcional, daria vazão a sua vocação como relato de uma luta pela liberdade que só foi conquistada ao custo de centenas de milhares de vidas.


NOTA 6


 

Operação Hunt (Heon-teu, 2022) | (Coreia do Sul)


Desde que surgiu pela primeira vez no essencial O Gabinete do Doutor Caligari em 1920, o plot twist vem seduzindo plateias ao redor do mundo. Literalmente traduzido como “reviravolta”, trata-se de uma revelação tão impactante que acaba por representar uma mudança drástica numa trama. Como exemplo, muitos devem se lembrar de O Sexto Sentido, cujo plot twist envolvendo a natureza do psicólogo vivido por Bruce Willis era tão marcante que simplesmente ressignificava tudo o que havíamos assistido até então. Não à toa, o efeito foi tão espetacularmente construído e apresentado que catapultou a carreira do então promissor cineasta M. Night Shyamalan. Que ele tenha sido engolido pelas próprias pretensões (e pelas expectativas do público), sabotando-se através da necessidade de sempre incluir reviravoltas em seus filmes, é pauta para uma outra conversa. Outros cineastas souberam lidar melhor com o conceito e o britânico Alfred Hitchcock talvez tenha sido quem mais soube capitalizar em cima disso, presenteando o público com algumas das mais deliciosas reviravoltas da História do Cinema (quem não se lembra de Psicose?).


Seguindo os passos de Intriga Internacional, thriller hitchcockiano que colocou Cary Grant para sobreviver ao fogo cruzado do mundo da espionagem, Operação Hunt tem todas as características do subgênero que consagrou a obra supracitada: traições, perseguições, muita ação e uma atmosfera de suspense que provocaria um largo sorriso no rosto rotundo do mestre do suspense. Mais do que isso, Heon-teu (no original) possui não apenas uma, mas várias reviravoltas em seu enredo, revelando que seus roteiristas gostaram tanto do conceito que praticamente estruturaram toda a história sobre ele.


Ambientado na década de 80, quando as Coreias do Sul e do Norte travavam uma guerra fria pautada pela paranoia, o longa começa com centenas de estudantes sul-coreanos protestando contra a lei marcial, resultando num massacre impiedoso pelas mãos da polícia, que representava os interesses de um governo opressor e desesperado, algo que era refletido pela agência de inteligência do país, preocupada com o crescimento da probabilidade de haver um agente duplo infiltrado na organização. Tudo piora quando é descoberto um complô para assassinar o presidente, dando início a uma caça às bruxas que coloca dois experientes agentes em rota de colisão.


Protagonizando, escrevendo e dirigindo (pela primeira vez), Lee Jung-jae, astro do fenômeno da Netflix Round 6 (série pela qual venceu o Emmy esse ano) tem sido peça-chave na divulgação de Operação Hunt, o que poderá levar desavisados aos cinemas esperando por um longa-metragem orientado para as massas, quando o próprio roteiro vai na contramão das tendências comerciais. Não pela falta de ação ou conteúdo, mas pelo excesso num modo geral, especialmente se tratando das já citadas reviravoltas.


Espetacular em seus trinta minutos iniciais, Jung-jae mostra suas credenciais como diretor de ação, mantendo a câmera na mão e sempre próxima dos personagens (e consequentemente da ação), ele revela um olhar apurado para as sequências mais explosivas, imprimindo energia e surpreendendo com ângulos arriscados, mas sempre eficazes (como quando uma granada estoura na frente do protagonista). Os enquadramentos inquietos, reforçados pela fotografia de tons azulados, mas sempre suja, contribuem para essa sensação de ansiedade que permeia toda a narrativa.


Tendo comprovado o seu talento como ator, Lee Jung-jae surge extremamente carismático num papel que tem tudo para consolidá-lo como o astro internacional que Round 6 já projetava, saindo-se admiravelmente bem ao acumular funções, especialmente quando lembramos que ele está dirigindo a própria performance. Seguro, ele convence como herói de ação, mas sofre com um personagem opaco em termos dramáticos, mesmo contando com uma história secundária que tenta explorar seu lado mais humano (detalhes adiante).


Já como roteirista, o sul-coreano revela ter sucumbido aos encantos do plot twist ao adicionar uma série deles. A trama já inchada pelo excesso de subtramas (aquela envolvendo um relacionamento do protagonista com uma jovem poderia ser descartada facilmente), torna-se difícil de acompanhar à medida em que o script vai adicionando camadas aos jogos estratégicos dos espiões. Confuso, o público tenderá a se concentrar nas várias sequências de ação, que além de bem coreografadas, mantém a trama em constante movimento, com pouquíssimo tempo de respiro (um feito se tratando de uma projeção que supera as duas horas de duração).


Assim, em sua obsessão com as reviravoltas, Operação Hunt faz de tudo para se sabotar em seu terço final, quando enfileira plot twists até os últimos segundos (literalmente), fazendo com que a trama, já rocambolesca, se entregue ao ridículo. Em seus ziguezagues narrativos, porém, nunca deixa de ser agradável ver Lee Jung-jae com total domínio da cena, seja na frente ou por trás das câmeras.


NOTA 6,5

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