Festival do Rio 2022 | Dia 9
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2022 | Dia 9

Sra. Harris Vai a Paris (Mrs. Harris Goes to Paris, 2022) | Inglaterra


É sempre curioso perceber como determinados papéis acabam reverberando na carreira de algum(a) artista. Tomemos a britânica Lesley Manville como exemplo: em 2017, no estupendo Trama Fantasma, ela interpretou a irmã de um conceituado estilista na Inglaterra da década de 50. Exalando autoridade e adotando uma postura constantemente fria, Manville fez de Cyril uma figura fascinante e que exercia grande influência sobre o irmão. Que este tenha sido interpretado por Daniel Day-Lewis, conterrâneo vencedor de nada menos do que três Oscars de Melhor Ator, só engrandece o trabalho da atriz, indicada a Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel.


Aqui, neste remake de um filme feito para a TV (que contava com Angela Lansbury e Omar Shariff no elenco), Manville se vê novamente assumindo uma personagem envolvida com a alta costura, com a ambientação na Londres dos anos 50 completando o combo de coincidências. Porém, ela faz de Ada Harris uma mulher que não poderia ser mais diferente de Cyril: com uma energia inebriante sempre acompanhada de um sorriso no rosto, a Sra. Harris é uma daquelas pessoas cuja luz irradia por onde passa, contagiando quem está por perto. Dotada de um otimismo inabalável, ela está sempre pronta para dizer o que precisa ser ouvido, apoiar quem precisa de ajuda e consertar o que precisa ser corrigido.


Trabalhando como faxineira, ela passa os dias lidando com membros das classes mais abastadas, lamentando o fato de ocupar um espaço invisível aos olhos da sociedade londrina, retratada por sua vez como um lugar pouco convidativo para a classe trabalhadora, tradicionalmente sufocada pelos privilégios de uma minoria que não se esforça para diminuir o abismo de desigualdade que os separa. O conformismo que toma conta dessa parcela da população é algo que não entra na cabeça efervescente da Sra. Harris (“quando vim para cá, as ruas eram pavimentadas de sonhos”, ela recorda em certo instante). E é esse sentimento que a leva perseguir sua mais nova obsessão: um suntuoso vestido Dior descoberto no armário de uma patroa.


Essa inocente frivolidade, impensável em circunstâncias naturais para aqueles financeiramente desfavorecidos, é encarada pelo roteiro não apenas como um sonho a ser realizado, mas como o catalisador de um movimento muito maior e mais ambicioso, algo que aproxima a espiral progressista iniciada pela Sra. Harris da jornada transformadora de Forrest Gump, trocando o caráter casual e incidental do filme estrelado por Tom Hanks pela espontaneidade de uma senhora que simplesmente se recusa a dobrar-se perante o sistema. Como se a pré-disposição a lutar fosse inerente ao seu caráter, este, por sinal, tão puro que a impede de enxergar a grandeza de seus próprios atos.


Transcendendo a roupagem de feel good movie que tão confortavelmente veste, Sra. Harris Vai a Paris se sai bem ao discorrer sobre temas melindráveis (o papel da mulher na sociedade, o combate aos estereótipos, a luta pela igualdade) justamente por tratá-los com trivialidade, fazendo com que pautas progressistas cheguem ao espectador despidas de qualquer intenção panfletária, mesmo que durante o processo a produção esbarre em obstáculos narrativos que momentaneamente ofuscam a fantasia, seja pela insistência em adotar a sorte como subterfúgio para conveniências, seja por ignorar consequências (o roteiro escala a amiga de Harris para cobrir suas faltas, mas esquece que a mulher também trabalha) ou por soar repetitivo ao martelar seu discurso.


Mesmo assim, é difícil não simpatizar com um filme que utiliza uma absolutamente adorável senhora inglesa para nos lembrar das recompensas de permitir que o amor guie nossas atitudes, fazendo valer aquela velha, mas nada obsoleta, máxima de que “gentileza gera gentileza”.


Uma fábula edificante trazida pelo Festival do Rio que cai como uma luva num momento em que sonhar e ter empatia, infelizmente, parecem estar fora de moda.


NOTA 7


 

Mãe e Filho (Un petit frère, 2022) | França


Indicado a Palma de Ouro no Festival de Cannes, Mãe e Filho apresenta a comovente história de Rose (Annabelle Lengronne), que deixou a Costa do Marfim para tentar uma vida melhor na França. Acompanhada por Jean e Ernest, dois de seus quatro filhos, sua maior luta é conciliar os prazeres da vida com a obrigação auto imposta de manter sua família. Vivendo no apartamento de um generoso parente, ela o tempo todo entra em rota de colisão com o homem. Jovem, Rose ainda guarda resquícios da personalidade rebelde típica da adolescência, embora tenha idade suficiente para carregar dois filhos sob suas asas.


Escrito e dirigido por Léonor Serraille (vencedora da Câmera de Ouro em 2017 por Jovem Mulher), a produção conta com uma atmosfera realista, mas sem perder a leveza de vista, ancorada nas interações espirituosas envolvendo Jean e Ernest. Enquanto o primeiro, mais velho, sonha se tornar piloto de avião, o segundo demora a amadurecer, e é comovente vê-lo apresentar traços infantis mesmo na adolescência, quando demonstra uma dependência psicológica ainda maior do irmão.


Promovendo uma espécie de “coming of age triplo”, onde acompanhamos o crescimento não apenas dos dois meninos, como também da mãe deles, Mãe e Filho consegue superar o bom início com um segundo ato envolvente por se concentrar em Jean e Ernest, que crescem “na marra” enquanto a mãe se ausenta. Nesse caso, o filme nega ao espectador o júbilo de acompanhar os prazeres da adolescência, preferindo focar nas dificuldades que precisam ser superadas pela dupla. As sequências de Jean tentando se relacionar com uma mulher mais velha, mas sendo atrapalhado por Ernest sintetizam essa ideia de que, assim como Rose, os dois não percebem que precisam um do outro, pois só a união real entre eles permitirá um crescimento de fato.


Contando com uma narração lúdica que mais distrai do que complementa a história, o roteiro espelha essa teimosia do trio protagonista, apresentando capítulos supostamente dedicados a cada um deles, enquanto jamais deixamos de acompanhar também os outros dois. Forçados a crescerem num contexto duro e determinado a autorizar apenas a sobrevivência, já que viver depende de sacrifícios maiores do que os imaturos personagens estão dispostos a se submeterem, Jean, Ernest e Rose são os pilares de uma história que eventualmente foge ao controle da realizadora Léonor Serraille, que finalmente cede à necessidade de privilegiar um lado em detrimento dos outros.


No entanto, ela o faz sem permitir que o público assimile, negando o impacto ao interromper o clímax. Rompimentos teoricamente traumáticos são diluídos pelas demandas do roteiro, que ao clamar por seguir em frente, escancara as sequelas do atropelamento de beats, especialmente aqueles envolvendo os relacionamentos de Rose e a decadência psicológica de Jean, quando repentinamente aponta seu holofote para Ernest, encarregado de conduzir a trama até o seu desfecho.


Demonstrando certa dificuldade para amarrar pontas soltas, sentimento corroborado pelos inéditos diálogos expositivos que se enfileiram no terceiro ato, Mãe e Filho é um filme certamente mais forte no papel do que na tela, quando tem suas emoções drenadas por suas ambições narrativas. Nada que tire os méritos de uma história sempre fascinante e comovente, liderada por um elenco admirável.


NOTA 7,5


 

O Menu (The Menu, 2022) | Estados Unidos


Na filosofia do grego Epicuro (341 a.C. – 271 a.C.), chamado de “O Profeta do Prazer” e “O Apóstolo da Amizade”, é um dever do homem tornar a vida presente a melhor possível. E o melhor tipo de vida é o de prazer, não qualquer um, mas um refinado. Em outras palavras, a doutrina epicurista, enraizada no Hedonismo, é o estilo de vida que adota o prazer como o principal meio de obter a felicidade humana.


Nesse contexto, somos apresentados a Tyler (Nicholas Hoult, o Fera dos últimos X-Men), um sujeito tão apaixonado pela alta gastronomia que é capaz de repreender Margot (Anya Taylor-Joy, de Noite Passada no Soho), por estar fumando. Não pelo fato de o cigarro fazer mal à saúde, mas sim porque “anestesia as papilas gustativas”. Ela, claro, não entende o fascínio dele por Julian Slowik (Ralph Fiennes, o M do 007 com Daniel Craig), Chef prestigiado que marca presença em reality shows e comanda o Hawthorn, um restaurante tão remoto quanto requisitado. Tão requisitado, que faz um gourmet como Tyler desembolsar alegremente os $ 1.250 cobrados pela experiência gastronômica oferecida por Slowik.


O problema é que especificamente na noite em que Tyler resolve jantar no tal restaurante, o Chef está apresentando um novo menu, especialmente concebido para sua seleta clientela, composta por 12 pessoas pomposamente transportadas pelo barco do Hawthorn que, como não poderia deixar de ser, fica localizado numa pequena ilha não identificada. A partir do momento que nos damos conta de quem (ou de que tipo de classe social) poderia realmente se dar ao luxo de pagar tão caro por um jantar, percebemos que os clientes tem muito mais em comum entre si do que se imagina e Slowik possui uma carta na manga para cada um deles.


Escrito por Seth Reiss (veterano dos programas de variedades estadunidenses) e Will Tracy (da premiadíssima série Succession), o filme é inteiramente estruturado em cima dos pratos concebidos por Slowik, ganhando cartelas espirituosas que emulam o linguajar típico dos cardápios. A irreverência presente nas legendas é sentida também nos diálogos, que abusam da acidez, mas sem perder a elegância. No subtexto, fica evidente o asco sentido pela produção em relação à alta sociedade, vista pelo Chef como seres desprezíveis e dignos de uma vingança bem articulada.


Vivido por um Ralph Fiennes completamente confortável ao assumir uma postura refinada e de fala firma (características já emuladas por ele em O Grande Hotel Budapeste), O Chef Slowik é um sujeito que claramente usa a faceta de homem sereno para esconder suas intenções maquiavélicas. Orgulhoso de seu trabalho, ele se entrega a longas apresentações antes de servir suas criações, mesmo estando diante de figuras que obviamente despreza. Nesse ponto, o clima bélico entre Slowik e Margot reflete uma situação não prevista apesar do tempo considerável de preparação. Ela, como ele, veio de baixo e está alheia ao cotidiano de privilégios que marca a rotina da maioria de seus clientes.


Intérprete talentosa que vem aproveitando cada oportunidade que ganha em Hollywood, Taylor-Joy é hábil ao transmitir o desinteresse de Margot pelo evento gastronômico, divertindo com tiradas que reforçam o abismo de diferenças que a separam de Tyler, que por sua vez é encarnado por Nicholas Hoult como um jovem fotogênico que aparenta levar uma vida próspera, beneficiando-se de uma composição que arranca boas gargalhadas por ilustrar o patético pedantismo do rapaz, quebrado apenas nas interações com o ídolo.


Inteligente, o roteiro cria situações para que os próprios personagens revelem suas personalidades, presenteando o espectador com alguns dos melhores e mais cínicos diálogos do ano, muitos articulados como críticas sutis a figuras que orbitam a indústria, como atores e empresários. Sobra até mesmo para a Crítica, encarada pelos roteiristas como armas poderosas capazes de destruírem carreiras. Entretanto, a relevância da crítica vivida por Janet McTeer (da série Ozark) é uma forma solene de respeitar essa classe, cuja importância na vida de Slowiak é transmitida através dos vários recortes guardados pelo Chef.


Num mundo globalizado onde o acesso à informação tornou-se absolutamente democrático, chancelando a banalização da Crítica, diluída em canais do YouTube desprovidos de conhecimentos teórico e técnico (qualquer um pode fazer um vídeo chamando uma opinião de análise), é cristalina e poderosa a cutucada que O Menu dá nos famigerados influencers e “produtores de reviews”, que abundam redes sociais e plataformas vociferando termos e linguagens que, na prática, não compreendem, contribuindo para a formação de um público cada vez menos instruído. E a sequência com Tyler sendo convidado a preparar uma refeição é a forma encontrada pelo filme de “se vingar”.


Dotado de um saboroso humor negro, O Menu é uma experiência singular e imprevisível, que provoca reflexões elaboradas na base do deboche sem jamais se levar a sério, apontando o dedo para o pedantismo afetado enquanto ri do próprio cinismo.


NOTA 8


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