Festival do Rio 2023 | Abertura ("Atiraram no Pianista")
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Abertura ("Atiraram no Pianista")

Atualizado: 29 de out. de 2023


Não é difícil de entender o motivo que levou Atiraram no Pianista (Dispararon al Pianista, no original) a ser escolhido como a primeira animação a abrir uma edição do Festival do Rio. Rememorando a história de Francisco Tenório Júnior, virtuoso pianista carioca que apesar de ter ficado famoso como parte da banda de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, foi muito mais do que isso, o filme joga luz sobre um caso que tinha tudo para permanecer nas sombras graças aos esforços em conjunto das ditaduras da Argentina e do Brasil. Considerado o maior pianista de Jazz da Música Brasileira, Tenório foi elemento crucial na popularização da Bossa Nova, ritmo que rapidamente se espalhou pelo mundo, influenciando grandes nomes da música global. Não demora até que a produção relembre colaborações entre os expoentes da Bossa com artistas como Frank Sinatra, Chet Baker e Miles Davis.

Mas a carreira de Francisco Tenório foi breve, infelizmente, pois em 1976, durante uma turnê em Buenos Aires, desapareceu misteriosamente. A culpa, logicamente, caiu sobre o regime ditatorial que dominou a Argentina através de um golpe de estado que culminou na deposição da então presidente Isabel Perón. Por outro lado, os amigos e familiares de Tenório permaneciam incrédulos: como poderia ele, um ser apolítico que só queria saber de música, acabar nos porões da ditadura? Essa dúvida é o que move o roteiro escrito por Fernando Trueba, reeditando sua parceria com Javier Mariscal na direção. Juntos, os espanhóis realizaram Chico e Rita, animação independente indicada ao Oscar 2011.

Desenhado a mão, Atiraram no Pianista possui um traço forte, com linhas proeminentes e cores vivas que ressaltam o caráter estilizado da obra. A animação, por outro lado, apresenta uma série de problemas, o que acaba comprometendo o projeto como relato documental. Falta fluidez no movimento dos personagens, que muitas vezes surgem robóticos em cena. Também há um delay que prejudica algumas sequências musicais, carecendo de sincronia ao captar os movimentos de Tenório e sua música.

Essas imperfeições poderiam passar despercebidas em projetos mais lúdicos, como o próprio Chico & Rita, mas quando a intenção é assumir-se como um documentário, a coisa muda de figura: há um momento, por exemplo, em que só percebemos que um entrevistado está emocionado graças ao design de som, já que suas expressões são imperceptíveis, o que é uma pena, já que Trueba reuniu dezenas de depoimentos de músicos, produtores e outros profissionais do meio musical. Todas essas figuras, claro, são levadas às telas no mesmo tom cartunesco do restante da obra.

É curioso ver artistas como Chico Buarque, João Gilberto, e Milton Nascimento pintados com cores vivas. Este último, aliás, faz questão de explicar que sua origem como músico tem relação direta com um filme (“sou um filho do Cinema”, ele declara). Para ser mais preciso, foi depois de assistir a Jules e Jim que Nascimento compôs suas primeiras canções. Essa citação à obra seminal de François Truffaut é apenas uma das referências à Nouvelle Vague, lembrada não apenas no título da produção (uma homenagem ao excelente Atirem no Pianista, também de Truffaut), mas também numa comparação feita por um personagem ("a Nouvelle Vague está para o Cinema, assim como a Bossa Nova está para a Música”).

Essa abordagem documental não chega a ser feita com muita sutileza, visto que a mudança narrativa é conduzida com rispidez pela dupla de cineastas. Por outro lado, eles são hábeis em contornar essa guinada brusca com honestidade, colocando o espectador ao lado do protagonista, permitindo que todas as descobertas sejam feitas ao mesmo tempo (ajuda quando nenhuma informação é ocultada, naturalizando as surpresas). Ainda que o roteiro seja estruturado da forma mais simples possível, nada justifica o distanciamento que a produção mantém de Jeff, tratado pelos roteiristas com uma frieza frustrante, já que pouco sabemos do sujeito além de sua obsessão com o caso envolvendo Tenório. Fica claro que o personagem é um mero instrumento utilizado para costurar a trama com as entrevistas, ligando o lado fictício com as passagens documentais.

Além da voz inconfundível de Jeff Goldblum como o protagonista, os espectadores ainda terão o prazer de acompanhar o trabalho de Tony Ramos, dublador de João, amigo de Jeff no Rio de Janeiro. A curiosidade de ouvir Ramos em inglês quase disfarça as conveniências perpetradas por seu simpático personagem, cujos contatos com as mais diversas celebridades são feitos com uma facilidade insuspeita. Nada é difícil para ele e devemos acreditar em sua competência simplesmente por este ser um “especialista em Música Brasileira”.

Em contrapartida, o filme ganha vida quando se aprofunda na história do pianista, com o pano de fundo político sendo encarado de peito aberto pelos realizadores, que não hesitam em se posicionar, principalmente quando alguns fatos são levantados para ilustrar a participação decisiva do governo estadunidense em golpes de estado numa série de países da América Latina (é o próprio João, de Tony Ramos, quem confronta o norte-americano Jeff, apontando a culpa da CIA na derrocada de João Goulart).

Enriquecendo a experiência com uma ambientação detalhista, Atiraram no Pianista proporciona um banquete para caçadores de easter eggs e nostálgicos de plantão, inundando as telas com uma infinidade de referências à época, desde filmes e músicas, passando por novelas e outdoors (fique atento ao que é mostrado em segundo plano, principalmente nas cenas que se passam nos corredores dos estúdios Globo).

Atiraram no Pianista pode até não fazer jus aos grandes filmes que já abriram o Festival do Rio (proporcionando um bom debate quando comparado a Império da Luz, seu antecessor), com problemas técnicos que enfraquecem sua eficácia como documentário. O apelo de sua história aliado às belíssimas imagens dos indefectíveis cartões postais cariocas, no entanto, ajudam o espectador a ver com bons olhos essa digna homenagem ao legado da Bossa Nova e seu berço.


NOTA 6,5


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