Festival do Rio 2023 | Dia 10 (Último)
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 10 (Último)

Atualizado: 28 de out. de 2023

O Sabor da Vida (La Passion de Dodin Bouffant, 2023) | França

Alguns meses atrás, o mundo do Cinema ficou perplexo com a decisão da França de não selecionar o vencedor da Palma de Ouro como seu representante na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional. Apesar de não ser uma regra (nem acontece com frequência), é natural esperar que o Festival de Cannes exiba o que de melhor o berço da Sétima Arte tem a oferecer. Esse ano, por outro lado, tivemos o drama de tribunal Anatomia de Uma Queda e o romance gastronômico O Sabor da Vida dividindo os principais prêmios distribuídos na croisette. E embora o primeiro tenha levado a Palma de Ouro, foi o segundo que acabou escolhido para tentar colocar a França pela 41ª vez na briga pela estatueta dourada (com 12 vitórias, tem duas a menos que a Itália, a recordista). Apesar de ainda não ter visto o novo filme de Justine Triet, ao final da sessão de O Sabor da Vida, os motivos ficaram mais do que cristalinos. Na verdade, absurdo mesmo será não incluí-lo entre os cinco finalistas. Trata-se de um trabalho tão complexo e ao mesmo tempo tão delicado, que espero fazer jus com meu humilde texto.


Vencedor do prêmio de Melhor Direção em Cannes, o vietnamita Anh Hung Tran pode não ser conhecido pelo grande público, mas comprova que “nem todos podem se tornar grandes artistas, mas um grande artista pode vir de qualquer lugar”, parafraseando Ratatouille, outra obra-prima e com quem La Passion de Dodin Bouffant (no original) divide uma série de semelhanças. A frase, dita pelo lendário Chef Gusteau se refere a cozinheiros, mas pode ser aplicada em qualquer área. Aliás, essa mistura entre Gastronomia e Cinema é uma das especialidades do roteiro, também escrito por Tran.


A história acompanha a parceria entre Dodin (Benoît Magimel) e Eugénie (Juliette Binoche) que há vinte anos trabalham juntos na criação de verdadeiras maravilhas culinárias. O primeiro, considerado “o Napoleão das Artes Culinárias” é dono da mansão que emprega a segunda como cozinheira-chefe, que por sua vez é frequentemente chamada de “artista” em função de seu talento artesanal. Dedicando-se a verdadeiros banquetes para uma aparente confraria, os cozinheiros vivem para a culinária, em todos os sentidos e processos. Mas se você está pensando que a narrativa se resume a duas horas e vinte e quatro minutos da dupla cozinhando e trocando flertes, está muito enganado. O Sabor da Vida é muito, mas muito mais do que isso.


O dom que os protagonistas possuem para cozinhar é diretamente proporcional às habilidades de Anh Hung Tran como roteirista, que impressiona pelo grau de sofisticação alcançado nos traiçoeiros paralelos que traça. Afinal, estamos falando de personagens que buscam as belezas da vida através da Gastronomia. Dodin e Eugénie vivem para dar felicidade às pessoas e a melhor forma encontrada é justamente cozinhando. E eles aproveitam cada etapa do processo: repare, por exemplo, como mal conseguem esconder a empolgação ao anunciarem um cardápio. Depois, vem o procedimento minuciosamente sincronizado de materializar o que estava no papel. E, por fim, a parte mais aguardada: comer. E se Dodin participa ativamente das conversas que acontecem durante as refeições, Eugénie prefere ficar na cozinha (“converso com vocês através da minha comida”, ela justifica).


Em contrapartida, Dodin não esconde o prazer de ver as pessoas comendo, especialmente sua parceira (“posso vê-la comer?”, pergunta inocentemente). E não estamos falando de almoços tradicionais, mas verdadeiras experiências gastronômicas, compostas por diversos pratos (ou serviços, como é dito). Nem a bebida escapa (“o vinho é a parte intelectual da refeição, enquanto a carne é a material”, alguém chega a dizer). Para os artistas da cozinha, comer é tudo (“a invenção de uma receita traz mais alegria à humanidade do que a descoberta de uma estrela”).


Ainda que feliz (encontrou sua verdadeira vocação e consegue exercê-la livremente) e financeiramente confortável, falta um elemento à vida de Dodin: uma esposa. E a única candidata possível é, claro, Eugénie, mulher que consegue entendê-lo como ninguém. O problema é que a cozinheira não abre mão da independência, algo que perderia com o fim da solteirice (“o casamento é como um jantar que começa pela sobremesa”). Sobra até para Adão e Eva quando a ideia é argumentar contra o matrimônio “lembre-se que o primeiro casal se arruinou por algo que comeram!”. Tendo seu pedido recusado inúmeras vezes, o homem não descansará enquanto não puder chamar Eugénie de esposa, fazendo com que a primeira metade da história se concentre nesses esforços.


E são personagens brilhantemente desenvolvidos: Ambos são pessoas inteligentes e com alta sensibilidade para a Arte (alguma surpresa?). Também utilizam a mesma percepção necessária na cozinha para compreender o mundo, principalmente as pessoas. Não por acaso, eles leem um ao outro da mesma forma que fariam ao desvendar os ingredientes de um prato novo. Nesse aspecto, os parisienses Benoît Magimel e Juliette Binoche não poderiam exibir mais química em cena. O amor de Dodin é tão grande, que é capaz de improvisar uma poesia apenas para atender aos caprichos da mulher de sua vida. Já Binoche possui uma margem ainda maior para explorar sua personagem, fazendo de Eugénie uma mulher aparentemente frágil, vulnerável, mas de grande personalidade.


É fácil entender o encanto que um desperta no outro. Modestos, eles negam os adjetivos superlativos que ouvem com frequência. Alguém chega a chamar um bolo de “milagre” em função do recheio permanecer gelado, mesmo após a superfície ser flambada (“é apenas uma reação química”, Dodin explica). Ele também é humilde o bastante para passar seus conhecimentos a uma promissora aprendiz. E quando percebe que a jovem não apreciou o sabor de um alimento específico, mostra compreensão (“isso é normal, você é muito jovem, deve-se acumular cultura e memória para moldar o paladar”, ele explica).


A direção faz jus ao prêmio que recebeu em Cannes e basta prestar atenção à movimentação da câmera para constatar um cineasta com pleno domínio de seu ofício. Quando Dodin e Eugénie estão na cozinha, as lentes não param, acompanhando o balé frenético de talheres, panelas e alimentos que entram em cena e saem com a mesma rapidez. Já nas sequências externas, acompanhamos apenas de longe, sempre com algum elemento impedindo que vejamos tudo com clareza. A fotografia, ousada ao apostar na iluminação natural em determinados momentos, consegue um efeito âmbar que traz elegância às cenas, ao mesmo tempo que ecoa as cores das panelas (o plano de Dodin sentado junto à janela sob um feixe de luz é especial).


A montagem também é eficiente ao dar dinamismo à narrativa, superando os obstáculos da duração. As elipses, por exemplo, são fundamentais nesse sentido: a partir do momento em que sabemos o que Dodin pensa a respeito de algo, o filme não perde tempo mostrando sua reação quando a situação se repete, pulando diretamente para a conclusão (a sequência envolvendo sua resistência em receber uma aprendiz). O destaque técnico, no entanto, fica por conta do som: Anh Hung Tran é inteligente ao reconhecer que os efeitos sonoros seriam muito mais poderosos do que qualquer tipo de trilha sonora, eliminando melodias incidentais para alcançar um efeito imersivo que merece ser reconhecido na próxima temporada de premiações.


Encerrando a história de uma forma absolutamente extraordinária com um movimento de câmera em 360º que ilustra a mudança de estação ao revelar sutilmente um flashback que arremata o enredo com perfeição, O Sabor da Vida transporta a experiência gastronômica almejada por seus personagens para a tela, guiando o espectador por uma jornada inesquecível, profunda e repleta de significados.


NOTA 10


 

Perfect Days (Idem, 2023) | Japão


Atualmente, é mais fácil reconhecer os talentos do alemão Wim Wenders como documentarista do que como autor de obras de ficção. Após três indicações ao Oscar de Melhor Documentário, nem todos se lembrarão que o veterano é um dos queridinhos do Festival de Cannes, tendo vencido a Palma de Ouro em 1984, pelo singular Paris, Texas.


Seu mais novo filme, indicado à honraria máxima do mais prestigiado festival do mundo e escolhido pelo Japão para tentar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, acompanha Hirayama (Koji Yakusho) um senhor pacato e apegado a uma rotina rígida que parece levar há bastante tempo. Homem de pouquíssimas palavras, ele acorda cedo para cumprir sua função como limpador dos banheiros públicos de Tóquio, trabalho que ele leva extremamente a sério apesar dos deboches de de Takashi (artificialmente aparvalhado), insuportável colega de trabalho e ponto fraco da produção. Tóquio não chega a ser uma novidade para Wim Wenders, que rodou um documentário na metrópole japonesa em 1985.


A performance de Kôji Yakusho facilita o trabalho de Wenders ao encontrar beleza no prosaico. Expressivo, Yakusho enfrenta a difícil tarefa de se expressar praticamente sem diálogos e sua cena final, por si só, já justifica o prêmio de Melhor Ator que recebeu em Cannes. Ao ler o parágrafo anterior, é fácil imaginar que algo extraordinário sacudirá a vida mundana de Hirayama, mas porque deveria? Perfect Days não é um filme hollywoodiano e segue fielmente a filosofia japonesa, apostando nos princípios e na relação estreita com a natureza para fisgar o espectador.


Hirayama leva a vida exatamente como gostaria: sem smartphones, computadores, televisores ou qualquer outra tecnologia para distraí-lo, pode dedicar-se exclusivamente à cultura (por meios analógicos, é claro). Sua coleção de fitas cassetes impressiona tanto pelo volume, quanto pela qualidade, indo de Lou Reed (cuja canção empresta o título ao filme) a The Animals. Ele também é um homem letrado, fazendo visitas semanais a um sebo para renovar sua biblioteca. Claro que o roteiro escrito pelo próprio diretor ao lado de Takuma Takasaki encontrará meios de justificar a postura do protagonista, o que pode até tirar seu brilho mesmo que de leve, mas não o impede de permanecer fascinante até seus ótimos segundos finais de projeção. Perceba que ele é muito querido por onde passa, seja a lanchonete subterrânea ou o restaurante do bairro, Hirayama comprova que possui, sim traquejo social, mesmo que seu estilo monossilábico indique o contrário. Talvez por também exibir uma generosidade ímpar, ajudando sempre que solicitado.


Wim Wenders, por sua vez, encontra meios de abraçar a naturalidade de seu protagonista, algo que se reflete na obra. As intervenções visuais que ilustram os sonhos de Hirayama, por exemplo, são criativas e elucidativas (repare como algumas imagens permanecem em cena mesmo após ele acordar, referenciando aqueles momentos trôpegos em que acabamos de acordar). O cineasta também se beneficia da fotografia de Franz Lustig para valorizar a paisagem urbana de Tóquio.


Sempre disposto a viver o “agora”, o protagonista ainda fornece uma bela explicação quando perguntado sobre sua natureza aparentemente solitária (“o mundo é feito de muitos mundos; alguns conectados, outros não.”) e não hesita ao participar de uma brincadeira (jogo da velha) ao encontrar um bilhete no banheiro, resultando em algumas das sequências mais intrigantes do filme.


Poético, filosófico e comovente, Perfect Days é a melhor ficção de Wim Wenders em muitos anos, o que aumenta as chances de o Japão conquistar sua 17ª indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional.


NOTA 8,5


 

Cobweb (Idem, 2023)


Filmes metalinguísticos abordando os bastidores de um longa-metragem estão em alta. Não faz muito tempo que o ótimo Artista do Desastre foi lançado e durante o Festival do Rio ainda tive a oportunidade de conferir o divertidíssimo Corta. Cobweb é mais um a engrossar a lista, embora não chegue perto dos dois filmes supracitados.


A história se passa na Coreia do Sul da década de 70 ,girando em torno de Kim (Song Kang-Ho, de Parasita), cineasta ridicularizado pela Crítica que após um sonho intenso, resolve voltar ao estúdio para realizar refilmagens. A ideia não agrada à dona do estúdio, que já dava como encerrado o período de gravações. Como a atriz principal possui um tempo limitadíssimo, tudo deverá ser feito com imensa rapidez. Para dificultar, Kim ainda precisa convencer os censores coreanos de que seu filme (também chamado Cobweb) não é subversivo, mas falha miseravelmente. A narrativa se desenvolve como uma comédia pouco sofisticada, mas ocasionalmente eficiente. No início acompanhamos os perrengues do diretor e toda a pressão que está sentindo para lançar o longa-metragem nos cinemas. O humor, muitas vezes popular, faz uso do histrionismo, o que é uma pena. Em contrapartida, Song Kang Ho encarna Kim com um comprometimento invejável.


Assim como aconteceu em Birdman, outro filme metalinguístico referente ao Cinema, algumas das melhores cenas de Cobweb (não confundir com aquele que já foi lançado) são justamente aquelas que demonizam os críticos de cinema (“a Crítica é um ato de vingança daqueles que não sabem fazer Arte”). Também há comentários pertinentes sobre a indústria (“quando é que fazer Cinema foi fácil?”. É uma pena que a produção se estenda mais do que o necessário, sempre um mal presságio para comédias.


Diferente de Corta, que teve a mesma ideia de começar e encerrar a projeção com o “filme dentro do filme”, Cobweb não se torna mais divertido por gastar seus preciosos minutos com essas fimagens. Pelo contrário, provocando bocejos e espiadas no relógio. Desperdiçando três ótimos momentos para concluir a narrativa, o longa-metragem escrito e dirigido por Jee-woon Kim acaba soando cansativo. Ainda mais se considerarmos a parcela considerável de diálogos que parecem saídos de livros de auto-ajuda.


Algumas sequências realmente espirituosas (como aquelas protagonizadas por aranhas) evitam que o filme sucumbe à mediocridade e mesmo que as comparações com o longa de Michel Hazanavicius prejudiquem, o tiro de misericórdia que atinge Cobweb é disparado pelo próprio diretor/roteirista, que acaba engolido pelas próprias pretensões. Caso se mantivesse na linha da comédia nonsense que estava seguindo com eficência, seu filme seria espetacularmente melhor recebido.


NOTA 7

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