Festival do Rio 2023 | Dia 9
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 9

Atualizado: 28 de out. de 2023

Vidas Passadas (Past Lives, 2023) | Coreia do Sul/Estados Unidos


É difícil encontrar, nos anos mais recentes, o caso de uma estreia tão marcante na direção de um longa-metragem como a de Celine Song neste Vidas Passadas. O roteiro, também de sua autoria, tem forte apelo biográfico, pois narra a história de vida de uma aspirante a dramaturga, desde a infância na Coréia do Sul, sua terra-natal, passando pela imigração no Canadá até culminar em Nova York, onde finalmente alcança o sucesso pelo qual tanto batalhou. O filme de Celine Song reconhece convenções do gênero e presta reverência a clássicos como Antes do Amanhecer e Moonlight, mas diferente de obras menos ambiciosas, não cai na armadilha de se prender a conflitos bobos, intrigas e outras abstrações. Os saltos temporais não acontecem como meras elipses. O que impede o ritmo de ser esmagado pelo vaivém narrativo é a escolha por interrupções em momentos-chave. Quando finalmente ficamos confortáveis perante uma situação, o filme abruptamente salta 12 anos no tempo, fazendo com que o espectador compartilhe com a protagonista a sensação de que o tempo voou sem que fosse possível se dar conta.


24 anos antes (“Se você deixa algo para trás, ganha algo também”)


Logo após o prólogo, em que alguém de fora do quadro observa e tece comentários sobre um trio de desconhecidos, o filme volta 24 anos no tempo para apresentar Na Young e sua rotina no país asiático. É lá que ela conhece Jung Hae Sung, colega de classe que ela nem imagina que ocupará um espaço importante em sua vida. Não demora muito até que os dois se descubram apaixonados, mesmo que estejam longe de entenderem esse conceito. Enquanto ele se permite ao menos sentir, ela é mais pragmática. Não por acaso, ela já possui certeza absoluta de que quer ser escritora (e vencer o Nobel de Literatura).


Song demonstra sensibilidade ao acompanhar Na Young, enxergando beleza no prosaico. Repetições como a ida para a escola e o retorno para casa são capturadas como se fossem momentos a serem recordados para sempre pela jovem protagonista. Além da fotografia pictórica, com planos plásticos como aquele que escancara a beleza cosmopolita da cidade sul-coreana são um bônus desse primeiro capítulo focado em mostrar a fagulha que incendiou a amizade entre Na Young e Jung Hae Sung. Amizade ou In-Nun? Pois o roteiro nos apresenta a um conceito maior que a amizade, mas diferente de amor. O que talvez nós ocidentais entendamos como destino ou acaso, os sul-coreanos definem como o jeito encontrado pelo universo de reunir almas fortemente conectadas em vidas passadas.


Passados 12 anos (“Por quê eu iria a Nova York?”)


É justamente quando sua família resolve imigrar para o Canadá que Na Young se dá conta da importância de Jung Hae Sung, por mais que ela se recuse a demonstrar isso. Aliás, ela se esforça em vender para si a ideia de que considera positiva uma mudança de continente (“a Coréia do Sul nunca venceu um Nobel”), algo que chateia Jung Hae Sung, esse sim mais aberto para demonstrações de afeto. A despedida entre os dois ao voltarem da escola é outro momento construído de forma emblemática por Song, o que comprova uma elegante e emocionante rima visual que acontece mais à frente. Ela deixou de ser Na Young para se tornar Nora, agora uma escritora de sucesso vivendo em Nova York. Ele, ainda na capital sul-coreana, está cursando engenharia e não hesita em procurar a velha amiga no Facebook, obtendo resposta apenas muito tempo depois. Aliás, a fotografia faz questão de construir paralelos entre as paisagens nova-iorquinas e o cenário cosmopolita de Seul.


Mais uma vez o roteiro é hábil ao evocar a ligação entre os dois através de sutilezas. Uma pergunta simples como a que abre esse capítulo, ganha um tom revelador justamente por ser utilizada como resposta. Para Na Young, é lógico presumir que os dois devem ficar juntos novamente. Pragmática, ela faz a pergunta da forma mais casual possível, deixando o convite quase imperceptível, o que talvez tenha inspirado uma resposta igualmente simples, mas tremendamente reveladora da parte de Hae Sung, justamente aquela que abre esse parágrafo.


Desenvolvendo a relação dos amigos de uma forma semelhante ao de Fulano e Fulana em Antes do Amanhecer de Richard Linklater, Celine Song traduz a banalidade de sua história, que poderia soar desinteressante nas mãos de alguém menos hábil, em complexidade ao examinar o relacionamento dos amigos. Mas a realizadora não incorre em pedantismo ou na artificialidade, especialmente quando joga o destino na equação. Ao invés de abordar esse conceito como uma desculpa para invocar o romantismo, ela adiciona uma camada à difícil tarefa de classificar a relação entre Na Young e Hae Sung.


12 Anos Depois (“Algumas jornadas custam a sua vida toda”)


É curioso perceber como o filme ilustra a mudança de pensamento de sua protagonista de formas que encantam justamente pela simplicidade. Se durante a infância, Na Young demonstra uma verdadeira obsessão pelo Prêmio Nobel, conforme vai amadurecendo, sua ambição vai sofrendo mudanças, já que o Tony se torna seu último objetivo, logo depois de ter demonstrado desejo em conquistar um Pulitzer. Ela se tornou uma dramaturga, afinal.


Mas Song também não se furta de estudar a personalidade da protagonista e colocar sua identidade sob um prisma. “Você sonha apenas em coreano, não em inglês”, ela ouve de outro personagem num determinado momento. Em relação à vocação de Celine Song para a concepção de frases marcantes, eu poderia citar mais uma dezena delas, mas não o farei para preservar sua experiência. Ela também reconhece as diferenças entre coreanos nativos e imigrantes coreanos, algo que enriquece a narrativa por posicionar a produção.


Com performances honestas e escapando do maniqueísmo que costuma prejudicar as comédias românticas, por exemplo, Celine Song converte Vidas Passadas num estudo complexo e verossímil das relações humanas, evitando a armadilha de antagonizar pessoas pelo simples fato destas estarem em lados opostos naquele momento da vida. Nesse ponto, John Magaro (do singelo, mas excepcional First Cow) merece elogios por fazer do marido de Na Young um sujeito que mal consegue esconder suas emoções, mas que demonstra maturidade e empatia suficientes para lidar com um conflito que se apresenta. Já Greta Lee confere carisma e peso dramático a Nora/Na Young, ganhando pontos pela habilidade em transmitir o peso que carrega por toda uma vida que poderia ter tido ao lado do amigo, mas que não teve graças a escolhas que ela seguramente fez.


Vidas Passadas tinha tudo para se tornar mais um daqueles filmes indies que se destacam em Sundance, mas caem no esquecimento logo depois. Por outro lado, a habilidade de Celine Song em extrair verdade de uma narrativa simples, mas calorosamente humana, é o que transforma a produção numa experiência universal, quase nos fazendo esquecer de que se trata do primeiro trabalho de sua diretora à frente de um longa-metragem. O final guarda alguns momentos descartáveis que tentam amarrar as pontas, mas que soam redundantes, como parte dos cinco minutos finais. Um pecadilho cometido por uma diretora que merece ser observada de perto a partir de agora.



NOTA 8,5


 

Segredos de um Escândalo (May December, 2023) | Estados Unidos


Mestre no melodrama, influenciado por Douglas Sirk e R.W. Fassbinder, Todd Haynes, cineasta sempre disposto a experimentar (em maior ou menor grau), opera com liberdade absoluta para construir uma experiência de sensações extremas e, portanto, únicas.


A história é protagonizada por Elizabeth Barry (Natalie Portman), atriz que resolve passar uma temporada com Grace Atherton-Yoo (Julianne Moore), mulher que fez a alegria dos tabloides ao ser presa (aos 24 anos) por manter relações sexuais com um rapaz de 13 anos. A visita estendida tem um propósito: Um filme está sendo preparado para contar nas telonas o famigerado caso que foi de "amoroso" para "de polícia" em pouquíssimo tempo e Barry é quem dará vida à Grace. Para ilustrar a discrepância de idades, a roteirista Samy Burch faz questão de mostrar o jovem Joe (Charles Melton) dando conselhos ao filho, que está se preparando para a faculdade. Mas Elizabeth descobrirá que há muitos detalhes escondidos dentro desse escândalo midiático.


Para começar, a ideia de filmar o roteiro de Burch partiu diretamente de Portman, que não hesitou em comprar o roteiro assim que descobriu sua existência. May December (no original), serviria como a oportunidade perfeita para que a atriz israelense pudesse trabalhar com o diretor de Carol, Longe do Paraíso, Não Estou lá e outras preciosidades. Haynes, no entanto, opta por uma condução diferente de tudo o que já fez. Ele abusa dos zooms dramáticos e a trilha sonora onipresente e ensurdecedora nos fazem lembrar de que estamos diante de uma obra camp, isto é, que é exagerada e tem plena consciência disso, como fica claro no momento em que uma estupefata Julianne Moore exclama um "não temos salsichas suficientes!" ao abrir a geladeira, pronunciando sua fala como se estivesse anunciando uma tragédia.


O humor é recorrente, variando entre o famoso "rir de nervoso" (estamos diante de uma mulher que traiu o marido com o amigo do filho de 13 anos), o típico humor negro e absurdo irresistível. É como se Todd Haynes quisesse criar sua própria novela mexicana, condensando-a numa narrativa de quase 120 minutos que não passa um minuto sequer sem debochar do exagero sensacionalista que costuma rechear esse tipo de obra.


É curioso, no entanto, que no meio de duas das melhores atrizes em atividade (cada uma com um Oscar de Melhor Atriz em sua prateleira), quem se destaque seja o jovem Charles Melton. O ator de 32 anos, mais conhecido como o Reggie da série Riverdale, surpreende ao revelar a faceta infantil de um homem atormentado por suas escolhas (repare como ele parece uma criança birrenta ao discutir com Grace). Isso não quer dizer que Portman e Moore não formem uma boa dupla, pois há talento demais envolvido para simplesmente desprezarmos a força da atuação de Melton.


O resultado é uma experiência irônica, debochada e que faz com que os espectadores se sintam culpados pelas gargalhadas que soltam. Já as cenas com as borboletas surgem como uma metáfora pouco sutil e até descartável do óbvio casamento entre Joe e Grace. Produção com cara de Oscar Bait (produções lançadas com o objetivo arrebatarem os votantes da Academia, Segredos de um Escândalo pode até não ser o melhor filme de Todd Haynes, mas é, certamente, o mais divertido de sua carreira.


NOTA 7,5


 


Priscilla (Idem, 2023) | Estados Unidos

A filmografia da cineasta Sofia Coppola invariavelmente lida com jovens em busca da liberdade como um conceito amplo. Bons exemplos são os excepcionais As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros. Um caso mais abstrato talvez seja o recente (e subestimado) On The Rocks. Nada supera, porém, Maria Antonieta e sua fatídica batalha para manter sua identidade em meio às rédeas curtas do reino. Esse, aliás, é um dos pontos que o filme estrelado por Kirsten Dunts compartilha com Priscilla, cinebiografia da ex-esposa de Elvis Presley baseada no livro de memórias assinado por ela mesma.


O filme começa em 1959, com a então Priscilla Beaulieu, uma simples adolescente de 14 anos morando com os pais numa base aérea da Alemanha Ocidental. Seu pai, um capitão austero e do tipo que intimidaria qualquer pretendente, acaba sendo persuadido por um jovem com boa lábia e recursos aparentemente inesgotáveis. Tratava-se de ninguém menos do que o Rei do Rock. Mas como uma garota de 14 anos acabou se envolvendo com uma super estrela dez anos mais velho? Essa é a pergunta que Sofia Coppola tenta responder nas quase duas horas de projeção que se seguem. E ela consegue.


Primeiro, Coppola, também autora do roteiro, fornece a Priscilla tudo o que lhe faltou em Elvis, outra ótima biopic. Tomamos ciência de que foi Elvis quem insistiu engatar um relacionamento com a moça. Com a mesma determinação, também exigiu que ela aguardasse o casamento para que consumassem o amor que compartilhavam. E Cailee Spaeny, de 25 anos, assombra, convencendo possuir dez anos a menos. Numa performance repleta de nuances, a atriz é hábil ao transmitir as insatisfações da jovem sem recorrer a histrionismos. Pelo contrário, Spaeny é hábil ao ilustrar como Priscilla foi capaz de contar sua frustração de forma tão silenciosa.


Embora menos badalada do que a de sua colega, a atuação de Jacob Elordi não é nada má: fisicamente imponente graças aos quase dois metros de estatura, o australiano compõe Elvis como um misto de melancolia e cansaço. Tendo acabado de perder a mãe, ele inicialmente vê em Priscilla a oportunidade de ter "um novo rosto feminino com quem conversar". Exausto após uma longa temporada como o maior símbolo sexual do planeta, Elvis vislumbra na amada um porto seguro, a chance de um dia desfrutar da tão sonhada calmaria.


Coppola é especialmente eficaz ao ilustrar, de forma sutil, a crescente dependência de remédios que acometeu Elvis, um sujeito de comportamentos tão extremos que precisava de medicamentos para dormir e também para acordar. Isso, talvez (um grande "talvez", diga-se de passagem) possa explicar os súbitos rompantes de agressividade aos quais ele acaba inevitavelmente se entregando.


Mas o Elvis de Coppola (e sob a perspectiva da própria Priscilla Presley) é um cavalheiro nato, mesmo que se esqueça disso por momentos esporádicos. Do tipo que envia flores e abre portas para a namorada. Não demonstra desejo lascivo pela moça, insistindo para que ela se preserve até finalmente casarem. A fala sempre suave de Elordi (e sem o sotaque carregado exibido pelo ótimo Austin Butler em Elvis) corrobora esse retrato sensível do Rei do Rock e é o que impede o público de se revoltar quando Priscilla eventualmente se vê impossibilitada de negar o perdão.


O sexo, componente considerado sagrado por Elvis, acaba sendo o maior problema que a produção exibe (ou deixa de exibir, no caso). Diante de tantos adiamentos e de uma construção de expectativa, pular a consumação do casamento abre uma lacuna grande demais para ser preenchida por outros eventuais conflitos. Era um momento que faria bem ao filme desenvolver e que enriqueceria ambos os personagens.


Seguindo o padrão das atuações, o design de produção de Tamara Deverell (de O Beco do Pesadelo) é simplesmente irretocável. Não apenas pela reconstituição histórica, mas pela opulência que injeta nos interiores sofisticados da mansão de Elvis, algo que os planos fechados de Coppola transformam paulatinamente numa espécie de prisão, tamanha a sensação de claustrofobia. A realizadora, aliás, oferece uma de suas conduções mais sóbrias, o que pode sugerir uma impressão mais mundana do que parece. A verdade é que

a cineasta consegue unir estilo e substância, trabalhando, nos detalhes, todo o magnetismo entre Priscilla e Elvis, até o relacionamento finalmente descambar para o tóxico.


Ocasionalmente divertido e sempre envolvente, Priscilla reforça a regularidade de uma autora que merecia um prestígio muito maior do que possui, representando mais uma adição a sua já admirável filmografia.


NOTA 8



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