Festival Varilux 2023 | "Almas Gêmeas" propõe discussões morais com ótimas atuações
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival Varilux 2023 | "Almas Gêmeas" propõe discussões morais com ótimas atuações

Atualizado: 19 de nov. de 2023


O cineasta veterano André Téchiné, de recém completas oito décadas de vida, deveria ser considerado, por si só, um patrimônio cultural francês. Queridinho dos festivais, Téchiné já foi indicado aos prêmios principais de Veneza, Berlim, Karlovy Vary e até Gramado, mas o que impressiona em sua vasta e bem-sucedida carreira são as seis indicações que recebeu à Palma de Ouro de Cannes, levando o prêmio de Melhor Diretor em 1985 por Rendez-Vous. Almas Gêmeas, seu vigésimo quarto longa-metragem, no entanto, acabou passando batido, dividindo público e crítica por onde passou.


Se no passado chegou a trabalhar com ícones do calibre de Catherine Deneuve e Gérard Depardieu, dessa vez o diretor optou por se cercar de talentos jovens, especialmente Benjamin Voisin, estrela de François Ozon no bacana Verão de 85. Noémie Merlant, por sua vez, é mais experiente, tendo despontado na obra-prima Retrato de Uma Jovem em Chamas e comprovado seu talento fora da França no excelente TÁR, contracenando com Cate Blanchett (que deveria ter conquistado seu terceiro Oscar por esse filme, diga-se de passagem).

Para escrever o roteiro, Téchiné optou por se reunir uma vez mais com Cédric Anger, seu parceiro de longa data e cuja má fase finalmente se encerra após embaraçosos nove anos desde Na Próxima, Acerto o Coração, seu último bom script. A história, contada através do mesmo formalismo clássico que marca a maioria dos trabalhos da dupla, começa focando a intervenção francesa no Mali, quando um jovem militar francês acaba gravemente ferido após ter seu veículo explodido por uma mina terrestre. A narrativa, então, se volta para Jeanne Faber (Merlant), que vive sozinha numa isolada e bucólica região dos Pirineus franceses. Ou vivia, pois não demora a descobrir que o tal militar ferido é ninguém menos do que o tenente David Faber (Voisin), também conhecido como seu irmão. Em coma, David passa por uma longa e penosa recuperação até finalmente ser autorizado a deixar o hospital, ficando aos cuidados de Jeanne.

As feridas corporais eventualmente desaparecem quase sem deixar rastros no corpo frágil do agora reformado tenente, ao contrário das psicológicas, que teimam em desaparecer. Sendo específico, David passa a sofrer de amnésia dissociativa, ficando incapaz de reconhecer praticamente todos com quem compartilhou o passado, incluindo a própria irmã. Com dificuldades até para lembrar de eventos marcantes da infância, o jovem sofre em silêncio enquanto Jeanne se empenha para trazer de volta o sujeito brincalhão e sorridente com quem passou a maior parte da vida. Afinal, desde que acordou do coma, David se mostra uma pessoa radicalmente diferente, desde o paladar (mais saudável do que antes) até a personalidade, desdenhando de vídeos caseiros onde fazia caretas e piadas para a câmera. Sério e preocupado, ele já nem vê Flambeau, o cachorro de estimação da irmã, com os mesmos olhos afetuosos de antigamente.

Essas mudanças, claro, chateiam o rapaz, um forasteiro na própria vila onde cresceu, mas são encaradas como um novo começo por Jeanne, servindo como o motor narrativo dos próximos minutos de projeção, que são filmados por André Téchiné com foco absoluto no magnetismo que emana da interação entre Merlant e Voisin. Se o rigor estético é abandonado vez por outra para adotar a câmera na mão (corpo estranho na linguagem classicista empregada), é o par central que mantém a narrativa nos trilhos, envolvendo o espectador através da bem enredada trama.

A trilha sonora além de irregular (parte do piano para as cordas sem cerimônia), soa intrusiva em vários momentos, nos quais o silêncio seria muito bem-vindo. Da mesma forma, algumas passagens secundárias surgem deslocadas, como a relação de David com uma gruta no meio da floresta. Parece que Anger e Téchiné querem introduzir algum simbolismo ou significado, mas a ausência de um desenvolvimento faz com que permaneça desconectada do restante da história. Por sorte, o veterano André Marcon (presente em outros dois longas dessa edição do Festival Varilux) entra em cena para viver o personagem mais complexo da boa galeria concebida pela dupla de roteiristas. Marcel, amigo dos irmãos Faber, é um homem que passa por um conturbado conflito de identidade e sua tristeza ao perceber que não teve a mesma “sorte” de David, cujas memórias se esvaíram completamente, traz à tona uma discussão mais eficiente do que toda a construção dramática ao redor de David e Jeanne.

Contando com um final elegante que opta pela discrição ao aparar a maioria de suas arestas, Almas Gêmeas é um filme maduro e cativante, ainda que um esforço menor de um realizador capaz de voos ainda maiores.


NOTA 7,5

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