Festival Varilux 2023 |"Anatomia de Uma Queda" faz estudo complexo e inteligente dos relacionamentos
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival Varilux 2023 |"Anatomia de Uma Queda" faz estudo complexo e inteligente dos relacionamentos


A França vive um ano particularmente magnífico em termos cinematográficos. Não que isso seja uma novidade, mas 2023 obrigou o berço do Cinema a ter de fazer uma escolha complexa para representá-lo no próximo Oscar de Filme Internacional. Afinal, a 76ª edição do Festival de Cannes já havia antecipado tal encruzilhada tendo de optar entre O Sabor da Vida e este Anatomia de Uma Queda, que acabou levando a Palma de Ouro. Trata-se de uma situação tão peculiar, que ter conquistado a maior honraria do mais prestigiado festival de Cinema do planeta não foi o bastante para o longa-metragem de Justine Triet se qualificar para disputar também uma vaga ao prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. E a decisão foi absolutamente compreensível. O Sabor da Vida, como deixei claro na crítica que fiz quando o vi durante o Festival do Rio, é uma obra-prima que tende a ser mais sedutora aos votantes do Oscar do que este drama de tribunal que, por mais inteligente e fascinante que seja, não é páreo para o pequeno milagre concebido pelo vietnamita Anh Hung Tran.

A premissa de Anatomie d'une Chute (no original) é muito simples: Quando o marido Samuel Maleski (Samuel Theis) é encontrado morto após cair do terceiro andar do confortável chalé em que vivem no gelado interior francês, Sandra Voyter (Sandra Hüller) se torna a principal suspeita, já que era a única pessoa no local. O filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), portador de um tipo de deficiência visual, havia saído para caminhar com seu fiel escudeiro (o cachorro que curiosamente, na vida real, se chama Messi). As sequências no interior do Tribunal de Grenoble, com as performances teatrais dos advogados conduzindo o vaivém inquisitivo, devem induzir o público ao equívoco de encarar a produção como um corriqueiro e unidimensional exercício de gênero, quando, na verdade, a solução do caso é pouco mais do que um mero detalhe.

A diretora Justine Triet, que escreveu o roteiro ao lado de Arthur Harari (parceiros no razoável Sybil), utiliza a morte de Samuel como o incidente incitante de uma trama que não busca apenas envolver o espectador com a dúvida em relação à inocência ou não de Sandra, mas principalmente como um catalisador de um minucioso estudo acerca dos relacionamentos, especialmente o matrimonial, num exame dos papéis desempenhados (pai, mãe, filho, esposa e marido). A opção por zooms repentinos e closes em momentos pouco oportunos revela uma direção mais interessada nas nuances, algo que só acontece graças ao evento principal, que oportuniza os detalhes tão caros à Triet. Embora todas as camadas sejam cuidadosamente estruturadas pela dupla de realizadores franceses, é a alemã Sandra Hüller quem brilha de verdade justamente por ser o motor narrativo essencial para a história decolar e Anatomia de Uma Queda alcança voos realmente instigantes.

A atriz que já havia se destacado no ótimo As Faces de Toni Erdmann - que fez o caminho inverso, isto é, perdendo a Palma de Ouro, mas conseguindo indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional – oferece uma atuação que chama atenção não apenas pelos detalhes, mas também pela naturalidade de suas ações. Sandra Voyter se torna peça fundamental no xadrez cênico proposto pelo roteiro, pois é a protagonista quem guia os demais personagens nesse enevoamento tão perseguido por Triet e Harari. Perceba como não há manipulações para alternar entre perspectivas, já que ambos os veredictos são perfeita e igualmente plausíveis. Assim como Voyter jamais deixa de soar verdadeira ao pleitear inocência, todos os argumentos da promotoria são absolutamente convincentes.

Dessa forma, ao invés de escolher um lado, o que não deixa de ser divertido em função do debate, o espectador será muito melhor recompensado ao direcionar seu olhar para a verossimilhança alcançada pela narrativa ao abordar os relacionamentos da protagonista, a começar pelo conjugal. Não por acaso, o ponto alto da projeção é justamente a discussão que Samuel e Sandra protagonizam na cozinha. A intensidade desse momento só não é maior que o altíssimo nível da argumentação de ambos os lados, tornando tudo ainda mais fascinante. Mais um ponto para Hüller, que projeta serenidade e inteligência num papel que poderia facilmente descambar para o melodrama ou o histrionismo. Além disso, o circo jurídico acaba por afetar irremediavelmente a relação da mulher com o filho, cuja confusão é sensivelmente transmitida pelo jovem (e extraordinário) Milo Machado Graner.

A cineasta Justine Triet mostra estar no auge de sua carreira ao investir em artifícios quase imperceptíveis, mas que fazem a diferença. Repare, por exemplo, como a câmera “perde o foco" no exato segundo em que Sandra se convence de que o filho realmente tomou a decisão que ela não gostaria que fosse tomada (“certo, vou buscar minhas coisas”), ilustrando, através do brilhantismo técnico, o baque emocional da mulher. Em outra passagem, um pouco menos discreta, Sandra reprende o próprio advogado quando este monta uma narrativa vilanizando Samuel (“ele não era assim”, diz a acusada, mantendo seus princípios mesmo num momento de crise). E se o pedido de Sandra Voyter para falar em inglês (um idioma que ela domina, ao contrário do exigido francês) num instante em que sua situação se complica, soa revelador, aquele em que ela tira seu blazer antes de uma explanação, diz muito sobre o esforço que ela está fazendo.

Os méritos mais evidentes, por outro lado, estão no ótimo texto escrito pelos roteiristas: alguns diálogos, que normalmente poderiam ser encarados como expositivos, são encaixados de forma orgânica na dinâmica do tribunal (note como informações complicadas são transmitidas naturalmente, como a orientação sexual de Sandra, por exemplo). Confesso também admirar a importância que o roteiro confere à precisão das palavras e como isso influencia diretamente na comunicação, algo que considero fundamental, mas que é pouco valorizado hoje em dia. O jogo de palavras entre os advogados se mostra um deleite para os entusiastas lexicais, com direito a correções e distorções.

Distanciando-se do maniqueísmo típico do gênero ao se posicionar numa área cinzenta quando o habitual é escolher entre o preto e o branco, Anatomia de Uma Queda talvez frustre aqueles que estiverem esperando uma conclusão tradicional, algo que é desmontado através da banalização com que a diretora encena a aguardada divulgação da sentença, com a própria Sandra Voyter verbalizando que independentemente do veredicto, não há espaço para alívio. Uma simples declaração e um simples adjetivo não serão suficientes para suplantar o turbilhão emocional pelo qual passou. Nesse sentido, não há fala mais elucidativa do que aquela proferida por uma servidora pública durante uma conversa com Daniel: “Quando nos falta um elemento para julgar algo e essa falta é insuportável, tudo o que precisamos fazer, para sair da dúvida, é decidir; nos inclinarmos para um lado ao invés do outro”.

No final das contas a tal “queda” presente no título é apenas mais um dos vários jogos de palavras que o filme engenhosamente emprega em suas quase duas horas e meia de projeção. Uma alegoria para discutir temas com uma determinação tão impressionante quanto sua eloquência. E que tenhamos outras disputas como essa entre O Sabor da Vida e Anatomia de Uma Queda, resultado da alta qualidade da produção francesa. Nós espectadores só temos a ganhar.


NOTA 8,5


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