'Homem Aranha Através do Aranhaverso' consegue a proeza de superar o anterior
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

'Homem Aranha Através do Aranhaverso' consegue a proeza de superar o anterior


Depois do sucesso acachapante junto a público e crítica (incluindo um Oscar de Melhor Animação), era inevitável que Homem-Aranha no Aranhaverso ganharia uma continuação. Ou duas, já que os produtores/roteiristas Phil Lord e Chris Miller (de Anjos da Lei, Uma Aventura Lego e A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas) planejaram uma trilogia para concluir a jornada de Miles Morales, figura popular nos quadrinhos, mas que demorou a chegar às telonas. Contando com uma galeria diversificada de personagens, a produção conseguiu combinar estilo e substância numa história que contemplava as diferenças, ao mesmo tempo em que abria um leque de possibilidades em sua abordagem do multiverso (anos antes de Homem-Aranha Sem Volta Para Casa). Homem-Aranha Através do Aranhaverso não apenas mantém essa postura vanguardista (e a trilha sonora matadora), como aumenta o escopo de seus acertos ao consolidar-se na franquia Homem-Aranha, dando-se o luxo de analisar a importância de cada um que cruzou o caminho do super-herói.

Exibindo a mesma identidade visual que marcou o filme anterior ao propor uma fusão de linguagens (quadrinhos e Cinema), Através do Aranhaverso torna a apostar em telas divididas, onomatopeias e outros recursos típicos das HQs, ao passo que também inclui alternâncias entre o 3D e o 2D, aproveitando as oportunidades que surgem para conferir camadas estéticas ainda mais arrojadas. Cada “universo” visitado possui uma assinatura distinta, diferenciando-se com facilidade uns dos outros. Nueva York, por exemplo, é uma metrópole futurista claramente concebida sob influência do artista visual Syd Mead (o mesmo de clássicos como Blade Runner e Alien), com estradas suspensas, veículos voadores e arranha-céus que fazem jus ao termo (um, em específico, serve como plataforma de lançamento para um foguete).

Já a Terra de Gwen Stacy além de carregar traços marcantes na arquitetura, traz uma fotografia que retrata o lugar com um visual realista, aproximando-se das animações contemporâneas e distanciando-se consideravelmente da "Terra 1610" de Miles Morales, que surge como uma verdadeira ilustração de quadrinhos, seja pelas “bolinhas” que emulam o halftone das páginas ou pelas linhas rústicas que ganham uma improvável combinação com as cores intensas que explodem na tela.

Claro que nada adiantaria ter um véu artístico tão expressivo envolvendo a produção se os personagens não fossem cativantes ou a trama instigante o bastante. Em ambos os casos, felizmente, o filme se sai admiravelmente bem, pois além de desenvolver cuidadosamente o relacionamento entre os personagens centrais (beneficiando-se de uma duração incomum, concedendo espaço a cada um deles), os insere numa cadeia de acontecimentos que não se esquiva dos conflitos. Se normalmente um blockbuster animado desse tipo tenderia a jogar seguro com suas alternativas, Homem-Aranha Através do Aranhaverso é corajoso ao explorar sua história ao máximo, abraçando uma densidade dramática que impacta o espectador justamente graças ao investimento emocional que foi paulatinamente sendo feito ao longo da projeção.

Ao contrário da aventura anterior, na qual estava apenas descobrindo suas habilidades e não estava nem perto de dominar os conhecimentos sobre o multiverso, nesta continuação Miles Morales já é um super-herói estabelecido, mas isso não o deixa imune aos efeitos colaterais da juventude. Afinal, com apenas 15 anos, Morales é plenamente consciente dos seus poderes, mas não das consequências do seu uso, deixando-o a mercê de uma prepotência típica da idade, julgando saber mais do que realmente sabe e ser mais forte do que realmente é. Essa falibilidade, a despeito do filme de 2019, contribui para manter o herói com os dois pés fincados na humanidade, facilitando a identificação com o público que abraça sua perspectiva com simpatia e sem reservas.

Isso é essencial para o funcionamento da trama principal, que eleva os riscos da jornada de Miles a um patamar altíssimo quando colocamos em perspectiva projetos de outras mídias envolvendo o Homem-Aranha. Com o intuito de manter esse texto livre de spoilers, me aterei ao fato de que o protagonista se depara com um dilema estarrecedor em diferentes níveis, especialmente em função de sua parca experiência de vida. Os roteiristas, no entanto, não se contentam em desenvolver o arco dramático de Miles, com uma decisão que pode afetar não apenas todo o multiverso, mas também o cânone do Homem-Aranha, expressamente citado e que ainda serve como uma grande celebração da história do personagem, englobando desde séries animadas, filmes e até games, o que deve enlouquecer os fãs de longa data.

Essa carta de amor a um dos super-heróis mais queridos de todos os tempos não é escrita à revelia, já que o roteiro não se exime da obrigação de trabalhar com ônus e bônus. Nesse aspecto, o Homem-Aranha 2099 (dublado brilhantemente por Oscar Isaac) serve como um antagonista formidável: levando aos cinemas a importância de ter sido o primeiro latino a vestir o manto aracnídeo nos quadrinhos, Miguel O’Hara é acima de tudo um super-herói e, como tal, é imbuído de intenções sempre nobres. Seu ofício como guardião do multiverso (ou do cânone, como revela em determinado momento) é levado muito a sério e nem mesmo o drama de Miles Morales é capaz de arrefecer o seu ímpeto.

Entrando em cena de forma tão dramática e enigmática que nem o roteiro resiste em fazer piada, a eficiência de O’Hara como personagem também se deve ao designer de produção estreante Patrick O’Keefe e a figurinista Brooklyn El-Omar (do anime Jujutsu Kaisen): repare, por exemplo, como o QG do personagem é quase inteiramente retilíneo e mergulhado em tons escuros, refletindo seu traje predominantemente negro, mas com detalhes em vermelho vivo, como a tradicional aranha no peito (e que lembra uma caveira), contribuindo para a aura ameaçadora necessária para o segundo ato. Note também que assim que suas motivações são esclarecidas e o conhecemos melhor, o filme deixa de esconder o seu rosto (perceba como sua máscara parece com aquelas usadas por lutadores mexicanos) e trata de mudar sua localização.

Em rota de colisão, temos o implacável Miguel (enrijecido por uma vida moldada por traumas) contra um Miles incapaz de agir racionalmente (e como poderia?). Ao invés de se ater ao clássico embate Herói X Vilão, o roteiro propõe um conflito entre duas figuras com motivações mais do que plausíveis, identificáveis, beneficiando-se de uma carga emocional que torna o debate muito maior do que os dois participantes. E essa, em última análise, é a grande beleza de Homem-Aranha Através do Aranhaverso, que poderia muito bem se apoiar na nostalgia autorreferencial como fez o bem-sucedido Homem-Aranha - Sem Volta Para Casa, mas que opta por caminhos mais ambiciosos ao oferecer um espetáculo visual que também encanta por suas dimensões narrativas.

A ação, diga-se de passagem, é irrepreensível, seja do ponto de vista estilístico, ou da mise-en-scène. Adotando uma lógica visual que brilha (literalmente) ao incorporar recursos utilizados nos quadrinhos (o congelamento de planos, os ângulos abertos e os combates divididos em espaços), o filme também merece créditos por criar set-pieces que tinham tudo para soarem caóticas, com numerosos personagens compartilhando a tela, mas que são concebidas sob uma dialética espacial que mantém o espectador sempre a par do que está ocorrendo. E acredite, há sempre muita coisa acontecendo, algo que deve ter sido um pesadelo para o montador Mike Andrews (Megamente) e cujo jogo de cintura coloca seu trabalho aqui como um dos mais complexos e bem executados deste primeiro semestre.

Os roteiristas Phil Lord, Chris Miller e Dave Callaham (Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis) encontram subterfúgios até mesmo para driblar os diálogos expositivos e quando finalmente se entregam a estes (ao explicar uma mudança envolvendo Peter B. Parker), podem ser perdoados ao levarmos em consideração que o filme anterior estreou há quase quatro anos, servindo para reverdecer a memória do espectador. Já aqueles que tiverem Homem-Aranha no Aranhaverso fresco na lembrança, poderão desfrutar de várias ligações entre os filmes, desde as mais claras como o retorno do Colisor e a presença do Gatuno até as mais rebuscadas, como uma piada envolvendo o artista britânico Banksy e a origem do vilão Mancha (Spot, no original).

E por falar em Mancha, um personagem que esbanja inventividade já em seu design, é dublado com imensa personalidade por Jason Schwartzman (parceiro recorrente do cineasta Wes Anderson), que utiliza a fragilidade habitual de seus papéis para transformar o vilão numa das figuras mais irreverentes do projeto. Mancha, que ainda está descobrindo seus inusitados poderes, compartilha algumas das melhores lutas com Miles Morales, além de possuir diálogos hilariantes (aquele sobre buracos, por exemplo). É uma pena, portanto, que mesmo num longa-metragem com quase 140 minutos de projeção (um recorde se tratando de uma animação), ele acabe aparecendo apenas esporadicamente, sumindo de grande parte da projeção, embora o impacto de seus planos seja sentido ininterruptamente. A ideia de se tornar “mais do que o vilão da vez” vai ao encontro da proposta do script de fazer uma reflexão não apenas sobre as ações de Morales, como principalmente a reação em cadeia que culminou na transformação do adolescente em super-herói.

Pois Homem-Aranha Através do Aranhaverso ainda encontra tempo para debater se o jovem Aranha é ou não produto do acaso, uma coincidência para alguns ou uma anomalia para outros, visto que para que pudesse assumir o manto aracnídeo, seu “universo” passou por um reajuste, o que ocasionou um desequilíbrio na imensa teia que rege o cânone (e a referência à abertura dos filmes de Sam Raimi é outro toque de classe). Esse desajuste, aliás, é reflexo da própria vida de Miles, representado de forma elegante pelo plano em que ele e Gwen resolvem relaxar (de cabeça para baixo, com a cidade invertida ao fundo).

Reservando uma parcela considerável de suspense para o terceiro ato, quando a proximidade de antagonistas gera uma tensão quase palpável até algo surpreendente acontecer (num aceno à montagem paralela do final de O Silêncio dos Inocentes), Homem-Aranha Através do Aranhaverso nunca deixa de ser imaginativo, tirando sarro das várias vezes em que testemunhamos a morte do Tio Ben (algo semelhante foi feito em LEGO Batman sobre os pais de Bruce Wayne) e até mesmo ao reconfigurar o núcleo que orbita o protagonista: se no filme anterior o Homem-Aranha Noir de Nicolas Cage roubava a cena, agora é a vez do “Spider-Punk” fazer as honras, com tiradas regadas a pura rebeldia.

Inspirando-se em Star Wars: Episódio V - O Império Contra-Ataca ao encerrar a projeção com um imenso cliffhanger que revoltará uma parcela considerável do público, Homem-Aranha Através do Aranhaverso consegue a proeza de superar o já excepcional longa anterior, aprofundando-se na vida do carismático Miles Morales enquanto promove um mergulho na mitologia de seu alter-ego. Ao explorar e analisar minuciosamente o cânone da franquia, talvez o maior feito do filme seja o de impressionar o público mesmo depois de nove aventuras cinematográficas.


E com a promessa de fazer o mesmo em 28 de Março do ano que vem.



NOTA 9


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