"Missão de Sobrevivência" é opção razoável em tempos de Barbenheimer
Esse ano já vimos Gerard Butler estrelar um filme de ação (o bom Alerta Máximo, lançado em janeiro), mas o apetite do ator irlandês parece longe de ser saciado, ainda mais se considerarmos essa nova fase como potencial sucessor de Liam Neeson no trono dos filmes B de ação. E convenhamos, Missão de Sobrevivência, longa-metragem que estreia esse final de semana no Brasil, não é uma repetição dentro da carreira de Butler, pois basta uma checagem rápida para constatar que o mais perto que ele já chegou de um filme de guerra foi quando protagonizou o regular Redenção em 2011. Não que isso tenha mudado com Kandahar (no original), mas não deixa de ser um representar um lampejo de originalidade vê-lo em ação no Oriente Médio. Aliás, o que mais chama atenção no filme é justamente o fato de ter sido rodado quase inteiramente lá, algo incomum para os padrões hollywoodianos (ainda mais se tratando de uma produção com orçamento modesto).
Na trama, o ator irlandês interpreta Tom Harris, agente “emprestado” pelo MI6 à CIA para cumprir a missão de sabotar um reator nuclear iraniano. Prestes a voltar para casa, ele é convencido pelo misterioso colega Roman (Travis Fimmel, o Ragnar Lothbrok da série Vikings) a realizar um serviço supostamente rápido e descomplicado envolvendo o intérprete afegão Mo (Navid Negahban, o sultão da versão live-action de Aladdin), mas as coisas se complicam quando seu disfarce é comprometido e sua cabeça posta a prêmio. Perseguido por operacionais de diversas agências e nacionalidades, incluindo o implacável Kahil (Ali Fazal, de Morte no Nilo), Tom e Mo devem deixar as discordâncias de lado enquanto fogem desesperadamente pelo deserto, onde uma série de obstáculos surgem no caminho rumo à base militar de Kandahar, local do resgate.
Missão de Sobrevivência pode até se desenvolver como um filme de ação e espionagem de moldes convencionais, mas o roteiro escrito pelo estreante Mitchell LaFortune não se furta de posicionar o filme no cenário geopolítico atual, aproveitando para incluir generosas pitadas de acidez ao abordar a política externa norte-americana, especialmente através da decisão de estabelecer a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão como pano de fundo. Esse acontecimento, aliás não é atirado ao acaso, pois além de influenciar personagens importantes (Mo, por exemplo), mostra como o país ficou dividido entre os apoiadores e os detratores do exército norte-americano e como a população é refém do regime Talibã, que aproveitou a debandada dos “gringos” para retomar o controle. Além disso, o texto de LaFortune é corajoso ao alfinetar a postura imperialista dos Estados Unidos, país que faz da Guerra uma poderosa indústria que move rios de dinheiro, com parte considerável destinado a corromper civis em missões que deixaram de fazer sentido.
Entretanto, o discurso pode até ser pertinente e razoavelmente bem articulado, mas é envolvido por uma estrutura rígida e esquemática, funcionando como um videogame ao enfileirar eventos/cutscenes que se alternam enquanto o herói salta entre checkpoints. O diferencial está na condução do experiente cineasta Ric Roman Waugh, especialista em filmes de ação e que já comandou Gerard Butler em dois filmes (Invasão ao Serviço Secreto e o bom Destruição Final: O Último Refúgio). Waugh tem ciência da importância dos momentos de respiro para a narrativa, aproveitando os hiatos entre set-pieces para aprofundar o relacionamento entre Tom e Mo. O diretor também é inteligente ao guardar grande parte do limitado orçamento para as sequências finais, quando finalmente se esbalda com tiroteios e explosões. Apesar de claramente apostar suas fichas no clímax, o destaque de Missão de Sobrevivência é uma estilosa sequência de ação que acontece em pleno deserto, quando a câmera assume o ponto de vista de Tom enquanto este usa óculos de visão noturna para tentar derrubar um helicóptero que o persegue.
Mas se a ação é eficiente, o mesmo não deve ser dito a respeito da trama costurada pelo roteiro, revelando-se complicada demais até para os padrões das últimas produções protagonizadas por Butler. O excesso de personagens e locações tende a confundir o espectador à medida em que burocratas governamentais começam a tomar decisões importantes, misturando escritórios com uma frequência pouco produtiva, ainda mais se considerarmos que os filmes de Jason Bourne investiram numa dinâmica parecida, mas infinitamente mais envolvente e menos truncada.
Além disso, é impossível não questionar os absurdos que se enfileiram a partir do segundo plot point, que transforma o terceiro ato num espetáculo de pirotecnia e implausibilidade ao atirar pela janela a pegada realista que a narrativa exibia até então. Se na primeira metade da projeção, os protagonistas sofriam com um mero pneu furado, cuja troca adicionou uma dose cavalar de tensão, no terço final somos presenteados com sequências de ação em que carros são explodidos por bazucas, mas os motoristas escapam ilesos e prontos para seguirem atirando. Outro ponto negativo é a forma como a produção superestima a importância de alguns personagens secundários, que apesar de aparecerem por menos de dez minutos espalhados pelas quase duas horas de projeção, ao morrerem ganham uma constrangedora homenagem que mais parece o momento in memoriam do Oscar, com a história sendo interrompida para relembrar momentos ao som de uma música melosa.
Como se não bastasse, a trilha sonora de David Buckley (das séries Sandman e O Poder e a Lei, ambas da Netlfix) soa como uma bagunça completa, mostrando uma irregularidade impressionante da parte do compositor, que aposta em sintetizadores, guitarras, corais e até mesmo violinos. É como se num determinado momento, o indeciso Buckley quisesse emular as composições de Hans Zimmer para Gladiador, abandonando-as para abraçar subitamente os acordes suntuosos de Vangelis para o clássico Blade Runner, mas não sem antes entregar-se a melodias pesadas como aquelas compostas por Harry Gregson-Williams em O Protetor, que antecipam alguns momentos mais agitados. Já os efeitos visuais surpreendem positivamente, graças a soluções visuais encontradas para disfarçarem a natureza barata do CGI empregado, como na sequência inicial que mostra o reator sendo explodido.
Da mesma forma, o elenco, mesmo heterogêneo, se sai bem: Gerard Butler, por exemplo, é extremamente bem-sucedido ao investir na mesma composição na qual vem se especializando ao longo dos anos, como o sujeito bom de briga, mas com problemas familiares, incluindo a tradicional chamada telefônica com a filha negligenciada (exatamente como em Alerta Máximo). E se os esforços de Travis Fimmel, que fora da série Vikings ainda não atingiu o máximo de seu potencial, são sabotados pelo pouco tempo de tela, Navid Negahban é hábil ao transmitir os intensos conflitos internos que marcam Mo, algo que fica evidente numa cena-chave durante o segundo ato no qual o intérprete não consegue se conter diante de um aliado de Tom. Quem se sai melhor, todavia, é Ali Fazal, carismático ator indiano que já havia se destacado no ótimo Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha e aqui faz de Kahil um oponente à altura do protagonista, mesmo que suas reais intenções permaneçam um mistério por mais tempo do que o necessário.
Sendo assim, Missão de Sobrevivência é mais um esforço bem sucedido de Gerard Butler em entregar ao espectador, especialmente seus fãs, um filme de ação consciente de suas limitações, oferecendo exatamente o que se espera de uma produção confortavelmente acomodada abaixo das superproduções voltadas para as telonas, mas bem acima daquelas que costumam impregnar as plataformas de streaming.
NOTA 6
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