CRÍTICA | "Cyclone"
- Guilherme Cândido

- há 7 horas
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Uma escritora talentosa esbarra no patriarcado tentando encontrar espaço como artista. Se passa em 2019, mas o filme livremente inspirado na trajetória da dramaturga modernista Maria Lourdes de Castro (conhecida como “Miss Cyclone”) é ambientada em 1919, época em que, se uma mulher precisava da permissão do marido para viajar ao exterior, imagina receber créditos sem precisar utilizar um pseudônimo. Cyclone, que estranhamente passou em branco pelo Festival do Rio, é um filme propulsivo, contundente e que se desenvolve tal qual uma força da natureza, analogia que poderia servir também para a protagonista, da obra mais recente da cineasta gaúcha Flávia Castro.
Assim como o excelente Deslembro (2018) trazia ecos pessoais, ilustrando o crescimento de uma jovem em busca de identidade à sombra da ditadura militar, Cyclone joga luz sobre o início de uma batalha que infelizmente ainda é travada diariamente pelas mulheres. E o faz com a segurança de alguém em pleno domínio do ofício cinematográfico, transitando entre gêneros com uma fluidez imprevisível.

Previsíveis mesmo só os desdobramentos dos conflitos enfrentados por Daise Castro (Luiza Mariani, do bom Todas as Canções de Amor), carregados em diálogos brutos e situações que são corriqueiras hoje (e objetos de estudo mais frutíferos em outros esforços artísticos), mas infelizmente necessárias. A questão do aborto é um exemplo claro, estendendo-se sem se distanciar do ponto de partida obrigatório, a mandatória provação a ser superada pela mulher que quer ser ouvida.

Mariani exibe forte presença de cena, mas não só, navegando bem pelas nuances dramáticas de Daise. Por outro lado, Eduardo Moscovis (voltando ao Cinema quatro anos após o ótimo Ela e Eu) pouco tem a fazer senão emprestar carisma a uma figura destinada à canalhice como tantos outros, a personificação do machismo entranhado na sociedade. Ricardo Teodoro, em grande fase após estrelar o memorável Baby (esse, sim, reconhecido no Festival do Rio), resvala nos mesmos obstáculos, atuando como uma ferramenta do roteiro na construção dos obstáculos à heroína. A gangorra dramática no elenco secundário é equilibrada pelo tom humanista empregado pela roteirista Rita Piffer, seu maior acerto.

Piffer posiciona Daise, a tipógrafa de uma gráfica insípida, como alguém da base da pirâmide que ousa ascender socialmente, encontrando na Dramaturgia mais do que um passaporte para o futuro: uma legitimação. Diferente de outras cinebiografias que se escoram na burocracia, o texto se concentra em pequenos desafios a serem vencidos, majoritariamente pendências, pontas a serem amarradas. Para se libertar das garras do sexismo, aqui simbolizados pelos créditos reclamados ao lado do companheiro e parceiro criativo, ela almeja uma bolsa de estudos em Paris, em outra alegoria articulada por Piffer. A esperança imortal de uma vida melhor, claro, reside na mudança. De ares, de pensamento.

O sistema, no entanto, é implacável e demanda sacrifícios maiores de quem exige, acima de tudo, autonomia. A sequência sexual envolvendo um funcionário público, é uma boa, ainda que deselegante, síntese desse discurso. Ao menos não há generalizações, seja por parte do outro funcionário, mais empático, ou pelas amizades marginalizadas (mais complexas).

Tecnicamente impecável, Cyclone ainda demonstra um bem-vindo cuidado com a reconstituição histórica, valorizando o trabalho cenográfico mesmo quando a direção adota planos mais fechados. Nesse aspecto, até a razão de aspecto reduzida, num quadrado que remete ao arcaico, fortalece o ambiente intimista, outro mérito de Flávia Castro.

A cineasta se esforça para refletir na tela o pensamento e as atitudes de sua protagonista, como se lutassem lado a lado. A linguagem punk, ao invés de anacrônica, ilustra como Daise de Castro estava a frente de seu tempo, da mesma forma em que se coloca como um manifesto contra o pensamento retrógrado. E é irônico como uma mulher do passado ainda se mostra necessária na contemporaneidade, de mãos dadas com uma diretora com quem compartilha pensamentos e intenções. Pois Daise, ou Maria Lourdes, é uma mulher do futuro enfrentando códigos do passado, onde nós estamos presos engatinhando ao futuro.
NOTA 7,5









