Mostra de SP 2023 | "The Royal Hotel" extrai horror da misoginia
top of page
  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Mostra de SP 2023 | "The Royal Hotel" extrai horror da misoginia


Duas mochileiras norte-americanas resolvem tirar férias na Austrália, mas ao ficarem sem dinheiro, aceitam o primeiro trabalho que aparece: bartenders num pub localizado no meio do nada. Hannah (Julia Garner, da série Ozark), a sensata da dupla, hesita, como se já conhecesse o filão de filmes com turistas virginais passando por maus bocados em terras estranhas. Já Liv (Jessica Henwick, a Bugs de Matrix Resurrections), a ingênua, encara como apenas mais uma aventura e com o bônus de render uns preciosos trocados. As duas partem para o outback australiano e chegam ao tal The Royal Hotel do título, uma pousada decadente funcionando acima de um movimentado bar. No meio do nada.


Hannah e Liv são contratadas para o lugar de duas jovens inglesas. Na única noite que passam juntas, a última das europeias como funcionárias do estabelecimento, fica claro que a clientela é muito mais complexa do que aparenta. As britânicas parecem tirar de letra, entregando-se aos delírios alcoólicos dos clientes ensandecidos. Plenamente adaptadas, mas pegam a estrada para nunca mais voltarem. Já Hannah e Liv, que assumem a nacionalidade canadense por acreditarem que serão mais bem tratadas, são menos espalhafatosas, especialmente a primeira, que logo percebe a atmosfera carregada do lugar.

Quem assistiu a A Assistente, bom longa-metragem anterior da diretora e roteirista Kitty Green, já deve imaginar qual direção a história tomará e mesmo os marinheiros de primeira viagem serão capazes de identificar as pistas deixadas pela realizadora australiana. São muitas premissas, todas com potencial, mas, infelizmente, Green não escolhe a melhor. Há uma preparação adequada para um típico terror com garotas sofrendo nas mãos de trogloditas e outra ainda melhor envolvendo duas jovens mulheres num ambiente infestado pela masculinidade tóxica, algo que vai ao encontro do projeto citado no início deste parágrafo. Mas a cineasta opta por um meio-termo que impede a trama de decolar.

Garner, cujo talento foi comprovado como a intempestiva Ruth de Ozark (que lhe rendeu três Emmys), é quem mantém o enredo sob controle. Sempre alerta, Hannah é responsável por impedir o espectador de baixar a guarda, como se algo grave pudesse acontecer a qualquer momento. Enquanto Jessica Henwick é eficiente ao retratar a personalidade despreocupada de Liv, Julia Garner investe em olhares desconfiados, modos evasivos e inflexões que refletem o incômodo de Hannah. Uma tentativa de estupro acaba sendo o ponto alto dramático de uma trama que se desenvolve sem sobressaltos, adotando uma cautela excessiva, como se estivesse de freio de mão puxado.

O que sobra é o cenário primitivo de homens abrutalhados, saídos diretamente de suas cavernas para subjugarem as fêmeas do recinto, como se tivessem o direito de fazerem o que quiserem com quem julgam inferiores. O desconforto crescente se transforma em tensão e converte o filme num thriller que promete voar ao lado do bom Sala Verde, mas que jamais sai do chão. Dando voltas na misoginia que empesteia o lugar, ao roteiro cabem dois escapes: um é a relação entre as protagonistas, mas que só é aprofundada quando já é tarde demais; o outro é o personagem de Hugo Weaving (o eterno Agente Smith de Matrix), relegado ao papel do ébrio incapaz que parece existir apenas para permitir as reações da esposa, único ser humano civilizado a frequentar aquela pocilga.

Forçada a colocar um ponto final na história, Kitty Green finalmente abandona a hesitação para se entregar a um final que faria muito mais sentido caso a australiana tivesse optado por uma das premissas citadas no início desse texto. O resultado é uma obra irregular, com atos desconexos, mas salva pelas atuações de suas dedicadas protagonistas, que quase fazem o espectador perdoar o potencial desperdiçado.


NOTA 5,5

bottom of page
google.com, pub-9093057257140216, DIRECT, f08c47fec0942fa0