Mostra de SP | "Afire" supera o desafio de lidar com um protagonista antipático
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Mostra de SP | "Afire" supera o desafio de lidar com um protagonista antipático


Afire, novo filme do cineasta alemão Christian Petzold, comprova que é perfeitamente possível fazer um bom filme centrado num protagonista antipático. Não que isso seja uma novidade, pois em Hollywood não é difícil encontrar outros exemplos, como Sniper Americano (a ideologia do personagem de Bradley Cooper causa polêmica até hoje), Sob o Domínio do Medo (que seguiu exemplo semelhante ao filme de Clint Eastwood) e A Lula e A Baleia (uma proeza transformar Jeff Daniels numa figura detestável). Aliás, até mesmo Fatih Akin, conterrâneo de Petzold já fez o mesmo com o controverso O Bar Luva Dourada, que testou os limites do espectador ao narrar a história de um sujeito absolutamente repugnante. Leon (Thomas Schubert) não chega a tanto, mas é rancoroso e rabugento o suficiente para dificultar nossa simpatia por ele.


Na trama, o rapaz viaja de carro com o amigo Felix (Langston Uibel) para passar uns dias na casa de veraneio da mãe deste. Ao chegar, porém, a dupla descobre que o local foi alugado para Nadja (Paula Beer), mulher russa que não demonstra resistência em dividir o espaço. Não demora muito até descobrirmos que ela é o tipo de pessoa que escuta música alta até tarde e passa boa parte das noites transando estridentemente com o salva-vidas local, enfurecendo Leon, já que ele está determinado a se concentrar na finalização do seu livro. Ou pelo menos é a impressão que ele quer passar, já que na primeira oportunidade que encontra para trabalhar, se distrai examinando as coisas de Nadja e ao ver alguém chegando, sai correndo para fingir estar escrevendo.


Essa, inclusive, é apenas uma das passagens em que Petzold, também roteirista, faz questão de incluir para suavizar não apenas a atmosfera da narrativa, mas a própria imagem do protagonista. Afinal, estamos diante de alguém que não se enturma com facilidade, mal escondendo seu incômodo com praticamente qualquer coisa que ameace seus rígidos planejamentos. Incapaz de aceitar um convite, ele se escora em sua obrigação profissional para evitar contato com as pessoas, apenas para demonstrar ciúme e inveja ao observar de longe. Nem os incêndios que atingem as florestas da região são suficientes para desprendê-lo de um egocentrismo incorrigível (“o vento está para o outro lado, então não corremos perigo”, ele chega a dizer).


Assim, quando inevitavelmente se aproxima de Nadja, as coisas começam a fugir do seu controle, o que o deixa mais irascível e volátil ainda, afastando as pessoas próximas. Mas Leon parece estar ciente de possuir esse tipo de personalidade e seu arrependimento imediato (ainda que contido) diante de uma atitude com a moça, fornece justamente o fiapo de esperança que precisamos para concedê-lo o benefício da dúvida, sugerindo uma complexidade maior do que supúnhamos.


Thomas Schubert, no entanto, não é o mais expressivo e carismático dos atores. Em parte, isso favorece algumas características de Leon, mas o restante do trabalho cabe a outros departamentos, preenchendo lacunas que o alemão demonstra dificuldade em fazê-lo. É o caso, por exemplo, dos figurinos, que cumprem não apenas a função de estabelecer o estilo tacanho do escritor, mas também uma ausência de vida que fica evidente nas roupas de cores escuras e muito mais formais do que as das pessoas à sua volta. Nesse ponto, não é de surpreender que Nadja use roupas mais leves e repletas de cores fortes, refletindo sua personalidade em contraste com a de Leon.


E Christian Petzold é eficiente ao demonstrar a teimosia e a pacholice do sujeito também com sutileza. Repare como ele indica o avanço do fogo, primeiro com a iluminação durante a noite, passando pelo aviso das autoridades e culminando nas cinzas que caem pouco tempo antes de um acontecimento marcante. Nada, porém, é capaz de fazer com que Leon se abra a novas experiências, algo que seu egocentrismo o impede de entender.


Realizador com uma habilidade notável para contar histórias simples, mas envolventes, Petzold já nos presenteou com Fênix e o ótimo Em Trânsito e adiciona este Afire em seu já admirável currículo, que o mantém como um dos autores mais prolíficos e bem-sucedidos da atualidade.


NOTA 7,5


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