Na contramão da Indústria, "Nostalgia" usa seu título como advertência
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Na contramão da Indústria, "Nostalgia" usa seu título como advertência


Indo na contramão do cinema comercial, cujos blockbusters trouxeram a nostalgia à moda para explorá-la como chamariz comercial, em sofisticadas chantagens emocionais muitas vezes bilionárias, o cineasta italiano Mario Martone opta por jogar luz no aspecto agridoce desse sentimento majoritariamente recebido com doçura pelo público. Aqueles que esperam por uma obra de sensações complexas, mas positivas em última análise, são exatamente os que tomarão de Nostalgia o soco no estômago pretendido por seu realizador.


Não é por acaso que o protagonista se chame Felice (“Feliz” em italiano), numa ironia mordaz chancelada pela performance de Pierfrancesco Favino, que compõe o sujeito como uma mistura de contradições: Embora possua um casamento amoroso e seja bem-sucedido profissionalmente, Felice resolve voltar para Nápoles, sua cidade natal, após mais de 40 anos vivendo no Egito, o que explica sua ligação com o Islã e o sotaque carregado que adquiriu, mas não explica a expressão rígida que jamais sai de seu rosto, ou a postura discreta, quase culposa que adota ao caminhar pelas ruas e becos do bairro onde viveu até os 15 anos. O que será que o manteve longe por tanto tempo? Qual o motivo que o levou a partir?

Inicialmente, as perguntas que surgem são colocadas em suspensão quando o vemos reencontrar a mãe, já envelhecida e que demora a reconhecê-lo. Em momentos de genuína ternura, o filme se beneficia do zelo de Felice, que dedica seu tempo a cuidar daquela senhorinha debilitada, mas que não esconde a felicidade de ter o filho único por perto. É ele quem a coloca para dormir e dela ouve perguntas aparentemente profundas, mas que são tratadas com trivialidade, em momentos tocantes que só são superados pela sequência envolvendo um banho, filmada com sensibilidade por Martone.

Mas quando a relação dos dois chega ao inevitável fim e Felice insiste em permanecer no local, tornamos a questionar suas motivações. É quando descobrimos que Felice busca exorcizar seus demônios mais íntimos, todos presentes em memórias que surgem em função de estímulos externos, sejam através de uma rua emblemática por ter servido de palco para uma briga ou por ladeiras percorridas na garupa de uma moto, pilotada por um grande amigo que hoje não passa de uma lembrança. Qual o papel que esse amigo misterioso desempenhou em sua adolescência?

Ao descortinar os mistérios que envolvem o passado de Felice e atormentam seu presente, Nostalgia deixa de lado a pungência dramática que dominara o primeiro ato, para se entregar a uma jornada de busca que promete mais do que acaba entregando de fato. Martone planta o suspense, mas a personalidade de Felice jamais lhe permite fazê-lo florescer além do banal. Pierfrancesco Favino (que já havia lidado com a máfia napolitana em O Traidor), tão brilhante ao retratar o tumulto interno de Felice durante a primeira metade, se perde no meio do caminho, quando até a direção de Martone reforça a sensação de desconexão, desmembrando Nostalgia em duas fases distintas em tom e estilo.

Os flashbacks que se misturam às imagens contemporâneas dão o ar de confusão pretendido pelo diretor/roteirista, oferecendo ao espectador a possibilidade de mergulhar na psique de um homem que teima em se fechar e é respeitado pelo filme. Até demais. O que corrobora a tese de que como personagem, Felice jamais forja um vínculo mais profundo com o público, anestesiando-o ao invés de provocar catarse, embora sirva como um guia adequado em meio ao clima de suspensa que permeia o terceiro ato.

Abusando das sombras para transformar o lugar num ambiente repleto de mistérios e que não deixa clara a sua vocação (seria uma alegoria para a redenção ou para a condenação de Felice?), Nostalgia desfere no público um golpe ainda mais poderoso nos minutos finais de sua projeção, assumindo-se como um conto de advertência que, em suma, ressoa muito menos do que se espera, equivocando-se ao se afastar do drama para abraçar um thriller pouco atraente.


NOTA 6,5


* Crítica originalmente publicada como parte da cobertura do Festival do Rio 2022

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