'O Aprendiz' ridiculariza Trump em sátira corajosa e mordaz
O filme que chegou aos cinemas brasileiros quase cinco meses após competir pela Palma de Ouro em Cannes pode parecer longe de se encaixar na filmografia de seu diretor. Ali Abbasi despontou com uma fábula insólita sobre trolls e ganhou prestígio com Holy Spider, uma crítica ao conservadorismo misógino que domina o Irã, seu país de origem. O caminho para encontrar um paralelo entre este O Aprendiz e o que move Abbasi como realizador é a forma impetuosa com que a história de origem de Donald Trump é contada. Biografar uma das figuras mais controversas da fauna midiática norte-americana seria um desafio para qualquer um, podendo incorrer em clichês e convenções e mesmo que a produção não seja capaz de escapar de alguns dos cacoetes inerentes às narrativas de ascensão e queda, a visão mordaz e seca do cineasta iraniano é o que torna a experiência fascinante. Talvez até mais fascinante do que o próprio biografado.
Após uma cartela afirmar que apesar de o roteiro de Gabriel Sherman (do intragável Independence Day: O Ressurgimento) se basear em eventos e pessoas reais, alguns segmentos foram ficcionalizados para fins dramáticos (mais do que um letreiro protocolar desse tipo de obra, um jeito de se resguardar juridicamente contra os iminentes chiliques do biografado), O Aprendiz tem início na década de 70, quando um jovem e tímido Donald Trump usava o dinheiro de seu pai para frequentar clubes exclusivos e sair com mulheres acima de sua alçada. Num desses lugares, inclusive, ele acaba conhecendo Roy Cohn, advogado famoso pela agressividade ao resolver casos e seu futuro mentor, trazendo sentido ao título do longa-metragem. O mesmo bom humor utilizado para nomear a obra, aliás, serve como bússola tonal a fim de guiar o recorte do início de carreira do empresário.
Talvez parte dessa ideia de surpreender o público, Sebastian Stan é quem surge na pele ainda não alaranjada do empreendedor imobiliário. Galã Marvel dos áureos tempos de Vingadores, Stan vem escolhendo papéis em produções cada vez mais instigantes. Esse ano mesmo pôde ser visto em Um Homem Diferente, presente nas seleções do Festival de Berlim (onde recebeu o Leão de Prata de Melhor Ator) e da Mostra de São Paulo. Mais do que um sujeito fotogênico, o ator romeno ajuda a ilustrar a inaptidão social de Trump, seja ao captar os gestos expansivos que contrastam com a postura rígida, ou através da dicção característica que denunciam alguém desesperado por uma credibilidade que passa longe de possuir. Trata-se de uma composição tão cuidadosa, que Stan não entrega todos os maneirismos (e os biquinhos) de uma só vez, completando-os paulatinamente conforme o personagem se desenvolve.
É fácil imaginar Donald Trump se enfurecendo ao ver a produção retratá-lo praticamente como o protagonista de uma comédia pastelão. O Trump que escorrega e cai logo após chamar uma mulher para jantar poderia tranquilamente ser interpretado por Peter Sellers ou Steve Martin, por exemplo, e Abbasi vai além nessa proposta de ridicularizá-lo, mas sem soar gratuito. É orgânica, diga-se de passagem, a sequência em que o vemos ser tolhido pelo pai durante um almoço, da mesma forma com que vemos alguém diminuir sua importância em meio a uma negociação (“se isso fosse sério, eu estaria falando com seu pai ao invés de você”, é dito). Além disso, o vemos gaguejando, implorando, apanhando e até vomitando em cena.
Se o Trump de hoje, ou pelo menos a versão que vemos pela TV, pode ser um sujeito confiante, de retórica inflamada e ego superlativo, o que vemos em O Aprendiz é um homem tão patético que chega a provocar pena em Cohn, algo decisivo para o advogado decidir ajudá-lo. Mais uma vez encarnando um Roy, mas sem os álibis dramáticos do protagonista da obra-prima televisiva Succession, Jeremy Strong incendeia todas as fagulhas que saem das interações com Sebastian Stan. Afinal, um aproveita a deixa do outro quando a ideia é fornecer perspectivas da ausência de escrúpulos dos cidadãos retratados, além de Roy Cohn representar a matéria-prima do que viria a se tornar Donald Trump (incluindo o bronzeado exagerado que deixa sua pele alaranjada).
Absorvendo com perfeição o escárnio que toma conta da narrativa, Strong chega muito perto de transformar Cohn numa caricatura, mas é seguro e talentoso o bastante para perceber que a natureza peculiar do protagonista jamais permitirá que essa linha tênue seja cruzada. São dele as sequências mais divertidas, com o mentor entregando-se às mesmas bravatas que viriam a se tornar marca registrada de seu pupilo. O fato de serem pérolas hilárias (“não quero saber qual é a Lei e sim quem é o juiz!”) não impede o espectador de sentir repulsa perante o que ouve de dois homens brancos, privilegiados e completamente desprovidos de moralidade. Entregando-se sem reservas a subornos, chantagens e outras técnicas sujas, Cohn não mede esforços para limpar a sujeira da família Trump, incluindo uma acusação de discriminação racial e o argumento do patriarca revela-se absolutamente cirúrgico (“como posso ser racista se meu motorista é negro?”). Roy não fica atrás, ostentando uma coleção de gravações com declarações comprometedoras de praticamente todos aqueles com cargos públicos nos Estados Unidos. Strong exala segurança, ilustrando a canalhice do advogado e reforçando o arco construído pelo roteiro, o que engrandece sua performance no ato final, quando o personagem mostra-se debilitado.
Refletindo a qualidade narrativa (mesmo que o tom claudique esporadicamente), a ambientação é irrepreensível. Como se não bastasse a meticulosa recriação de época, a própria fotografia de Kasper Tuxen (A Pior Pessoa do Mundo) faz questão de ilustrar a época retratada, fazendo-se valer de uma razão de aspecto quadrada e com um tratamento visual remetendo diretamente às fitas utilizadas nas décadas de 70 e 80, trazendo um ar de VHS às imagens (até as linhas azuladas estão presentes). Já a trilha sonora de Martin Dirkov, colaborador habitual de Ali Abbasi, faz da irregularidade sua força motriz, surpreendendo ao mesclar os acordes pesados das composições incidentais com canções inusitadas (uma, em específico, tem gemidos em versos imortalizados por Andrea Boccelli).
Essa irreverência, inclusive, casa com o sarcasmo à la Adam McKay que rege algumas sequências e aproxima O Aprendiz de um episódio de The Office. Mas o protagonista não é Ron Burgundy, nem Michael Scott, e sim um sujeito que utilizou o dinheiro herdado pelo pai para projetar uma vida construída à base de trapaças e transgressões (para ficar só em eufemismos). Que este homem sequer tenha demonstrado decência e humildade ao reconhecer a importância (outro eufemismo) de seu mentor, só não faz mais sentido que sua vitória na recente eleição presidencial estadunidense. A segunda, vale lembrar.
NOTA 7,5
Parabéns pela crítica