'O Clube das Mulheres de Negócios' satiriza convenções do patriarcado
Uma das vozes mais influentes do Cinema nacional, a paulistana Anna Muylaert possui um currículo que vai muito além de seu trabalho como diretora. Roteirista talentosa, assinou os scripts de Castelo Rá-Tim-Bum: O Filme (1999) e O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), duas de suas bem-sucedidas colaborações com o conterrâneo Cao Hamburger, mas foi Durval Discos (2002) que revelou seu potencial para ocupar a cadeira de diretora. Ainda chegou a lançar o ótimo É Proibido Fumar (2009) antes de emplacar os sucessos Que Horas Elas Volta (2015) e Mãe Só Há Uma (2016). O primeiro, inclusive, chegou a ser premiado nos festivais de Sundance e Berlim. Cada vez mais acostumada a um Cinema mais crítico, sua obra costuma cutucar feridas abertas da sociedade brasileira e O Clube das Mulheres de Negócios não é uma exceção, beneficiando-se ainda pela maturidade alcançada pela diretora.
A história sobre o exclusivíssimo clube que dá nome ao filme é uma utopia que elege o patriarcado como principal alvo, mas não o único. A corrupção entranhada na cultura brasileira, o racismo e uma reverberação do recente movimento #MeToo enriquecem a sátira proposta por Muylaert, muitas vezes indo ao encontro do discurso de Barbie, especialmente quando propõe inverter estereótipos de gênero. Mas enquanto o sucesso de Greta Gerwig fincou os dois pés na fantasia, a imaginação da diretora brasileira pende mais para um realismo farsesco.
Com isso, a produção diverte ao trazer serviçais masculinos em trajes diminutos objetificados pela câmera saliente e servindo às “mulheres de negócios” ao passo que os maridos são relegados a um papel submisso, limitando-se a fofocar com outros cônjuges enquanto as “fêmeas alfa” tratam dos assuntos importantes. O resultado soa como o oposto de Transformers (2007), por exemplo, imaginando Megan Fox alçada ao protagonismo com Shia LaBeouf levantando o capô de seu Camaro para as lentes valorizarem seus atributos físicos. O texto é ainda mais incisivo, trazendo não só uma inspiradíssima Irene Ravache repreendendo a falta de modos d’uma colega ao soltar um debochado “olha o decoro, temos cavalheiros à mesa!”, como também uma corajosa Grace Gianoukas, brilhando numa das sequências mais fortes do longa quando sua personagem surge assediando alguém. Essa passagem, aliás, é apenas um dos acenos à torrente hollywoodiana pós-Harvey Weinstein e Muylaert não economiza, ilustrando sem concessões a realidade de inúmeras mulheres que padeceram nas mãos do poderoso executivo norte-americano.
Por falar em poder, O Clube das Mulheres de Negócios também é uma alegoria sobre a estrutura de poder que rege a Sociedade. O roteiro aborda essas relações no mesmo tom irreverente com que inverte o #MeToo (“os homens do mundo inteiro estão se unindo contra esse tipo de atitude”), mostrando mulheres reagindo a tentativas de chantagem, negando acusações de corrupção mesmo depois de condenadas (alguém chega a ostentar uma tornozeleira eletrônica DE OURO!) e relativizando denúncias de assédio (“quisera eu passar por homens com o pinto de fora”). Trata-se de uma obra sólida, que desenvolve com segurança e destreza todas as pautas que busca debater, merecendo elogios por conseguir embalá-las numa jocosidade que só sai de cena nos planos finais, quando Anna Muylaert pesa a mão ao trazer os “final boys” em versões femininas, mastigando para o espectador e enfraquecendo a moral da história.
Claro que um projeto tão forte e direto como esse dependeria do comprometimento de seu elenco e, nesse sentido, O Clube das Mulheres de Negócios está muito bem servido. Além das já citadas Grace Gianoukas e Irene Ravache (em seu segundo papel sarcástico em 2024, após o brilhante Os Enforcados), o núcleo feminino ainda inclui Cristina Pereira (em cartaz também no bom A Herança), Louise Cardoso e Katiuscia Canoro, sendo esta última o destaque inquestionável. Mais conhecida pelas esquetes na TV, Canoro encarna um tipo que passou a ganhar os holofotes durante o mandato do presidente anterior. Desbocada, passando a maior parte do tempo exaltando o próprio órgão genital (lembre-se da inversão de gêneros!) e demonstrando uma paixão doentia por armas de fogo, sua Zarife provoca altas gargalhadas com a fanfarronice típica da extrema-direita.
O lado masculino da história não fica atrás: Luís Miranda, por exemplo, passa credibilidade como o jornalista empenhado em levar à tona os eventos que presencia, além de alimentar o viés antirracista do roteiro, da mesma forma que Rafael Vitti ganha de presente o papel do típico fruto da Geração Z, abusando de gírias e da conexão com o celular. Vitti está sempre sorridente e soa como alguém descompromissado, mas ele é hábil ao jamais abandonar a seriedade, o que é fundamental para a eficácia de sua sequência-chave.
O Clube das Mulheres de Negócios será mais lembrado por zombar do patriarcado, é verdade, mas quando permite a entrada literal de onças em sua história (num VFX questionável), dá margem para uma interpretação que alça a natureza ao topo dessa cadeia de poder e influência tão preponderante não apenas na trama, mas também no mundo. É uma forma de Muylaert dizer, auspiciosamente, que no fim a natureza sempre vence. Ou que, naturalmente, a vilania será castigada. De um jeito ou de outro, é mais um ponto marcado por uma cineasta que já passou da hora de ser tratada com a mesma reverência que seus pares masculinos no Cinema Brasileiro.
NOTA 7,5
Observação: Palmas para a brincadeira no pôster, reverberando o clima do filme ao trazer os nomes de Vitti e Miranda em destaque, mesmo que se negue e mostrá-los.
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