O Mal que Nos Habita mostra que somos os causadores de nossa própria dor
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

O Mal que Nos Habita mostra que somos os causadores de nossa própria dor


Os irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e (Demián Solomón) vivem de forma aparentemente pacata num vilarejo não identificado localizado numa área rural da Argentina. O cotidiano prosaico da dupla é abruptamente impactado quando tiros são ouvidos no exterior de sua propriedade. Os veteranos espectadores de filmes de terror já devem antecipar que sair da segurança de seu lar para examinar uma ocorrência misteriosa pode ser uma péssima ideia, mas é exatamente o que os irmãos acabam fazendo, deparando-se com um corpo mutilado e o que resta de uma mão. A cena perturbadora ganha contornos enigmáticos quando avistamos uma estranha engenhoca dourada ao lado dos restos mortais de um possível “faxineiro”, ofício que logo descobriremos passar muito longe daquele que conhecemos.

O cenário pode ser sinistro e misterioso, mas não para Pedro e Jimi, que o encaram com uma surpreendente naturalidade, indo buscar informações na casa de María Elena (Isabel Quinteros), vizinha idosa que demonstra desespero para ajudar seu filho mais velho, que encontra-se acamado e irremediavelmente inchado, uma visão pouco agradável (e que lembra Se7en - Os Sete Crimes Capitais), especialmente em função da ótima maquiagem empregada para transformar um corpo humano num pútrido e repugnante receptáculo de pus e suor. Pedro não tem dúvidas diante do que vê e suas expectativas são confirmadas quando María Elena revela que contratou um “faxineiro” para findar o sofrimento do pobre enfermo, mas não do jeito que pensamos e é aqui que tomamos conhecimento de que o tal “faxineiro” é um especialista em lidar com possessões demoníacas, uma evolução da figura do padre, tão comum em produções do gênero, mas que aqui é alguém portando ferramentas banhadas em ouro e feitas sob medida para mandar demônios de volta para o inferno ou coisa parecida.

Revelando-se para o mundo em 2017 com o bem recebido Aterrorizados, o argentino Demián Rugna faz parte do seleto grupo de realizadores de filmes de terror contemporâneos que reconhecem a importância da construção da atmosfera, estratégia que resulta em arrepios muito mais duradouros do que os efêmeros e, muitas vezes desonestos e esquecíveis, jump scares. Se você busca em O Mal que Nos Habita um filme de terror tradicional e de pouco impacto, daqueles passatempos escapistas facilmente encontrados em serviços de streaming, talvez tenha suas expectativas espetacularmente destroçadas.

O que faz dessa produção, exibida sob fartos elogios no mais recente Festival Internacional de Toronto, uma lufada de frescor dentro de um subgênero estafado é a capacidade de Rugna em utilizar elementos clássicos apenas como desculpas para arquitetar suas próprias ideias, como se pegasse emprestado tropos consagrados (alguns tirados diretamente de O Exorcista, por exemplo) para reescrever anos de um modelo estabelecido e consagrado.

Dessa forma, o cineasta conquista o espectador com uma construção de mundo que fascina justamente por nos manter instigados através do mistério, negando-se a diálogos expositivos que expliquem aquilo que estamos vendo, demonstrando concordar com a máxima “não há nada mais aterrorizante do que a nossa imaginação”, cunhada pelo mestre Alfred Hitchcock (1899-1980). E quando se dá ao luxo de fazê-lo, permite-se criar suas próprias regras, como no instante em que um menino aprende sobre o que deve ou não fazer em relação a possessões. E tais dogmas não surgem à revelia, já que Rugna as aproveita dentro da narrativa (a atração de demônios por luz elétrica é um belo subterfúgio para rodar sequências no escuro, vale ressaltar).

O tal universo habitado pelos personagens, apesar de complexo por suas regras e idiossincrasias, mostra uma forte influência de nossa realidade. A ideia de que o Mal (não é recomendado tratar o vilão por seu nome) pode se espalhar através do toque, remete aos tempos pandêmicos e o próprio isolamento dos protagonistas traz um teor apocalíptico à história, principalmente no terceiro ato, quando os acontecimentos iniciais se desdobram numa reação em cadeia que coloca até o mundo em risco. Nesse ponto, Rugna merece ainda mais créditos, por ser capaz de sugerir a escalada de perigo (e da própria narrativa em si) através de sutilezas, como ao mostrar um horizonte escurecido sugerindo que uma metrópole já ativou o protocolo de contenção da ameaça.

Claro que O Mal que Nos Habita também reserva uma porção considerável de momentos desconcertantes que escancaram um diretor que sabe exatamente como abalar as estruturas de sua audiência. O banho de sangue visto em cena não se limita ao gore puro e simples, gerando imagens chocantes que vão desde um cachorro atacando uma criança (num susto mais eficaz do que aqueles presentes na maioria dos filmes lançados na última década), até um suicídio brutalmente cometido. Importante frisar que a câmera não é desviada no clímax, mostrando cruamente o resultado da violência, algo que provavelmente afastará os espectadores casuais.

E mesmo que nem as crianças escapem de protagonizar cenas difíceis de esquecer (uma longa sequência numa igreja remete ao espanhol Os Meninos de forma assustadora), o alvo de Demián Rugna não é o Diabo em si, mas a própria humanidade. No melhor estilo George A. Romero (1940-2017), que fazia de seus filmes de zumbis, alegorias para sublinhar problemas da sociedade, o diretor sul-americano mostra que o verdadeiro Mal está nas próprias pessoas e não em figuras sobrenaturais. Portanto, não estranhe quando alguém parafrasear Nietzsche (1844-1900) dizendo que “Deus está morto”, que o tempo das igrejas acabou ou que "rezar não ajudará em nada". Para Rugna, atitudes têm mais poder e nossos problemas são grandes demais para recorrermos a soluções que fujam de nosso campo mundano. Aliás, parte dos conflitos do roteiro é destinado a uma crítica sutil à Religião e seu papel como agente do caos.

No mundo desesperançoso e condenado de O Mal que Nos Habita, as pessoas são feridas pelo Mal que elas mesmas criam, num autoflagelo cuja solução, infelizmente, é vislumbrada com pessimismo por Demián Rugna, um cineasta plenamente consciente de seu discurso e que tem o absoluto domínio da técnica cinematográfica. Uma combinação certeira que ainda renderá muitos frutos.


NOTA 8,5


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