"O Rio do Desejo" constrói melodrama romântico tipicamente brasileiro
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"O Rio do Desejo" constrói melodrama romântico tipicamente brasileiro


Durante uma noite aparentemente corriqueira no Amazonas, o policial Dalberto (Daniel de Oliveira) atende um chamado de agressão física. Ao chegar no local, ele se depara com uma poça de sangue, um homem no chão e duas mulheres. A mais velha é a primeira a prestar esclarecimento, mas é Anaíra (Sophie Charlotte), a mais jovem, quem assume a autoria (“fui eu! Quebrei uma garrafa e enfiei nele!”). O que era para ser um simples contato protocolar se revela o início de uma paixão, transformada em amor à medida em que Anaíra e Dalberto se conhecem e traçam planos para o futuro. Ele mira na riqueza material, oferecendo dinheiro e posses, mas ela quer o abstrato, “uma noite inesquecível”. Para realizar o desejo da futura esposa, Dalberto, que deixou a corporação para viver da pesca, resolve aceitar um trabalho clandestino, mas os dez dias iniciais da viagem rapidamente se multiplicam quando o homem recebe uma proposta financeiramente ainda mais tentadora.

Tentação, aliás, é o cerne de O Rio do Desejo, novo filme do veterano Sérgio Machado, diretor dos ótimos Cidade Baixa e Quincas Berro d’Água e roteirista de Madame Satã e Abril Despedaçado. O currículo recheado de pérolas do nosso cinema serve como chancela do seu talento e nos lembra de que o baiano de 55 anos é capaz de muito mais. Pois O Rio do Desejo, em seus ecos de Cidade Baixa, seu longa-metragem de ficção mais reconhecido, evidencia um profissional em pleno domínio de suas funções, claro, mas que opera numa marcha diferente, mais lenta, como se estivesse acomodado em sua zona de conforto.

Desenvolvendo—se como um melodrama clássico, mas com fortes pitadas de erotismo, o roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Maria Camargo, George Walker Torres e Milton Hatoum (autor do conto que embasa a história), estabelece fortes conexões entre os personagens, mas sem antes sedimentar características importantes do passado de cada um. Anaíra, como já dito, vem de um lar esfacelado pela violência. Dalberto é o idealista, o sonhador, mas carrega as cicatrizes psicológicas de ter crescido sem mãe, trauma compartilhado pelos irmãos Dalmo (Rômulo Braga), o mais velho, e Armando (Gabriel Leone), o mais jovem. Enquanto o primogênito é mais introspectivo, o caçula mal consegue conter a intensidade que a juventude lhe traz.

Essa intensidade, que cede espaço à impulsividade, faz de Armando o elo fraco de uma corrente de relações com potencial para ser um quadrado romântico. Se jamais deixa de ser um triângulo amoroso, é porque Dalmo consegue transferir o magnetismo compartilhado com Anaíra para encontros com prostitutas, permitindo-se extravasar toda a libido acumulada. Já Armando ainda não possui experiência suficiente para antever os caminhos que sua aproximação de Anaíra tomarão, sucumbido ao desejo, elemento crucial e que move a história.

Um simples triângulo amoroso passa longe de ser uma novidade, mas o que separa a trama de O Rio do Desejo do enredo de uma novela das nove é a capacidade de Sérgio Machado em transmitir a voltagem exalada pelos personagens através da linguagem cinematográfica. Os planos fechados que poderiam ser entendidos como um recurso para enfatizar a proximidade entre Anaíra e os irmãos num folhetim, aqui são utilizados para ratificarem a claustrofobia, por exemplo, com figuras que mal cabem na tela.

Em contrapartida, a ambientação no Amazonas, que ressalta a diversidade do nosso país, possibilita a produção utilizar seus vários rios e fronteiras invisíveis para mostrar Dalmo como um homem que está sempre em movimento, ao contrário de Anaíra, isolada em casa enquanto tenta se manter fiel ao marido. A fotografia, que utiliza as sombras para corroborar o tom misterioso, com segredos escondidos na penumbra, merece elogios também por permitir pequenos feixes de luz em momentos importantes, como na cena em que Dalmo observa Anaíra enquanto se penitencia ou no espaço em que revela as fotografias tiradas da moça, com o vermelho cumprindo sua tradicional função.

A narrativa enxuta, envolve graças à sintonia de seu elenco (méritos para a lendária preparadora de elenco Fátima Toledo), com interpretações carismáticas e repletas de personalidade. Se Daniel de Oliveira, um gigante do nosso Cinema com uma galeria de atuações marcantes, acaba ganhando mais espaço para explorar os extremos de Dalberto, Rômulo Braga é particularmente eficaz ao sugerir os conflitos internos de Dalmo, tomado por dilemas que o tornam a figura mais complexa da história, ao passo que Gabriel Leone, ator jovem, mas que já conta com uma filmografia respeitável, é hábil ao captar as nuances de Armando (note os olhares e a mudança da voz na presença de Anaíra), embora tende a ser mais lembrado pelos momentos mais explosivos. Já Sophie Charlotte é a que tem mais dificuldades, por lidar com um papel mais passivo.

Contando com um segundo ato que abre um fascinante leque de possibilidades, especialmente quanto às personalidades construídas até então, é uma pena que O Rio do Desejo opte pelo mais mundano dos caminhos, negando-se a cumprir as promessas que fez até então. Ao examinar a força do laço entre os irmãos e os desejos de cada um, a produção deixa de lado o mistério para se apegar a um senso mais imediato e simplista de conclusão, por mais que Dalberto seja beneficiado pela intenção do roteiro de manter até o fim as convicções do sujeito.

Dessa forma, O Rio do Desejo talvez deixe o espectador com um sabor amargo ao final da projeção, mas que não deveria se sobrepor aos acertos de uma história conduzida por um profissional que tem pleno domínio dos dignos do melodrama.


NOTA 7,5


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