Projeto James Bond #21: 007 Cassino Royale (2006)
Atualizado: 9 de abr. de 2023
007 Cassino Royale
(Casino Royale, 2006)
Assim como mencionei em textos anteriores sobre a série, quando Pierce Brosnan surgiu pela primeira vez na pele de James Bond, em 1995 no bom 007 Contra GoldenEye, era nítido o desespero dos produtores em descartar toda a ideia de renovação liderada por Timothy Dalton, que naufragou nas bilheterias com as duas aventuras que protagonizou. A EON, empresa responsável pela franquia, entendeu que o público não estava interessado em ver um Bond diferente, como se a bilheteria sinalizasse uma antipatia pela versão mais explosiva e humana do personagem.
Então, Brosnan subiu a bordo para recolocar a série no caminho do sucesso, emulando as aventuras clássicas de James Bond. Apesar de possuir experiência com filmes de ação e carisma suficiente para carregar o peso de um personagem tão icônico, Brosnan acabou sucumbindo a uma queda vertiginosa de qualidade sofrida pelos filmes que estrelou. 007 O Amanhã Nunca Morre acabou sendo seu ápice na série e aí vieram o medíocre 007 O Mundo Não é o Bastante e o tenebroso 007 Um Novo Dia Para Morrer, longa-metragem que rapidamente ficou conhecido como “o pior 007 de todos os tempos”.
O sucesso na bilheteria não bastou para os produtores, chocados com a repercussão negativa junto aos críticos e, principalmente, com uma projeção preocupante. Afinal, a ficção científica estava cada vez mais presente com Pierce Brosnan e exigia orçamentos mais e mais robustos. Previsivelmente, Barbara Broccoli e Michael G. Wilson se assustaram e resolveram recuar, buscando mais uma reformulação. Ninguém imaginava, porém, que eles promoveriam tantas mudanças, pois 007 Cassino Royale não representa apenas uma nova etapa, mas sim um reinício para toda a franquia. No jargão cinematográfico, trata-se de um genuíno reboot.
O anúncio da saída de Pierce Brosnan oficializou o início da temporada de especulações sobre quem seria seu sucessor. Foram cerca de duzentos nomes analisados, segundo o próprio produtor Michael G. Wilson, entre eles, Gerard Butler (300), Alex O’Loughlin (Havaí 5-0), Sam Worthington (o Jake Sully de Avatar), Clive Owen (de O Plano Perfeito e Mandando Bala) e Henry Cavill (o Superman). Enquanto Owen ganhou minha torcida na época (admiro seu trabalho desde Crupiê: A Vida em Jogo), mais tarde foi noticiado que apenas Henry Cavill e Daniel Craig restaram no páreo. Cavill, que com a saída de Craig voltou a ser cotado, só não ganhou o papel por ter sido considerado jovem demais, um fator de risco para os produtores traumatizados com a escolha do desastroso George Lazenby.
Hoje aclamado mundialmente, Daniel Craig passou por maus bocados após ser oficializado como o sucessor de Pierce Brosnan, recebendo uma enxurrada de críticas sobre sua aparência fora dos padrões da série segundo muitos fãs do personagem. Admito que fiz parte do grupo que tinha dificuldades para enxergá-lo como James Bond, mas tratava-se de um pré-conceito baseado numa ideia que era o exato oposto do que pretendiam os produtores e o próprio Craig.
De fato, o ator inglês não faz o tipo galã esguio, mas é justamente seu físico robusto que serve de base para a reconstrução de James Bond. Sai de cena o espião galanteador e elegante, entra o agente frio e bruto capaz de qualquer coisa para cumprir sua missão. E Craig traz a carga necessária de virilidade para transformar Bond numa espécie de brutamontes a serviço secreto de Sua Majestade, visão que é corroborada por escolhas curiosas da equipe de maquiagem, que decide mostrá-lo quase sempre sujo e suado, além de não esconder os machucados que rasuram seu rosto após as lutas, pois isso contribui para a desconstrução da perfeição irreal que acompanhava o personagem, antes invulnerável e agora mais humano e menos propenso a vaidade. Mais do que isso, o Bond de Craig sangra, age por impulso e erra, facilitando a identificação com o espectador, que pela primeira vez em muitos anos não está diante de um super-herói vestindo smoking.
Mudanças drásticas como essas só funcionariam de fato caso os produtores tomassem a corajosa decisão de reiniciar toda a história da série (gerando efeitos colaterais que abordarei mais adiante), mostrando o espião ainda em início de carreira, o que é feito da forma mais simbólica possível através da escolha de Cassino Royale (primeiro livro de Ian Fleming protagonizado por James Bond) como inspiração para a história. Aliás, até a música-tema mostra-se inspiradíssima ao contribuir para o desenvolvimento do filme. Note, por exemplo, como a canção composta e cantada pelo falecido Chris Cornell (ex-vocalista da banda Soundgarden) apresenta seu refrão “You Know My Name” (“Você Sabe Meu Nome”, em tradução livre) no exato instante em que Daniel Craig é visto em cores pela primeira vez e olhando diretamente para a câmera.
Iniciando com um prólogo que flerta com a excelência ao evocar a simbologia da fotografia em preto e branco, vemos Bond cometendo seus dois primeiros assassinatos, requisito para adquirir o status de 00 e assim receber a famosa permissão para matar. A missão, no entanto, não é nada glamourosa e a própria ausência de cor sugere o mundo sombrio e ameaçador ocupado pelo agente, que executa a sangue frio um bandido de colarinho branco e seu contato. Este último, diga-se de passagem, dá seu último suspiro após perder um longo e brutal confronto contra Bond, cujos métodos ainda rústicos provocam estragos no cenário e chocam o espectador, especialmente em função da inteligente decisão do diretor Martin Campbell de manter a câmera focada na vítima em profundo estado de agonia.
Campbell, que já havia posto em prática com 007 Contra GoldenEye um processo bem sucedido de reformulação, mostra evolução como diretor, não só pela passagem supracitada, mas por injetar doses cavalares de energia que mantém o ritmo da história sempre acelerado, afastando-se da condução clássica da série para investir num realismo quase cru, como em toda a sequência do primeiro ato em que Bond mostra obstinação ao perseguir um inimigo, dando destaque às habilidades de parkour que conferem um rejuvenescimento à ação da série. Por falar em rejuvenescimento, volto a citar a sequência pré-créditos para comprovar como Martin Campbell foi capaz de mostrar que Cassino Royale é um filme de 007 completamente diferente dos outros e a estilosíssima mudança no tradicional momento do tiro em direção à câmera encerra uma síntese perfeita do que o público deve esperar ver nas próximas duas horas de projeção.
Para conseguir essa abordagem extremamente realista, a equipe criativa de 007 Cassino Royale teve de fazer algumas escolhas difíceis, cujas quebras de paradigmas são sentidas através da redução significativa do humor (limitando-se a pontuais alívios cômicos) e da ausência de Moneypenny, Q e seus gadgets, por exemplo, além de resgatar o bom e velho Aston Martin em duas versões, mas nenhuma equipada com armas ou qualquer tipo de acessório que apele para a suspensão da descrença. Por outro lado, isso possibilita ao dinamarquês Mads Mikkelsen interpretar um dos mais refinados vilões de toda a série. É fácil lembrar de Le Chiffre como o gênio matemático que sangra pelo olho esquerdo e usa uma bombinha para asma, mas sua característica mais chamativa em relação aos seus antecessores é o fato de possuir motivações críveis e recursos tão limitados quanto plausíveis. Desbancando até mesmo o traficante Sanchez de 007 Permissão Para Matar que não escapou de participar de sequências de ação mergulhadas em nitroglicerina, Le Chiffre em nenhum momento deixa de convencer como ser humano (ao contrário do ridículo Gustav Graves de 007 Um Novo Dia Para Morrer) e o roteiro faz questão de apresentar claramente seus pontos fortes (a inteligência, a retórica e a habilidade no pôquer) e fracos (arrogância, relação de vulnerabilidade com seus chefes).
Escrito novamente pela dupla Neal Purvis e Robert Wade, mas com a colaboração de Paul Haggis (de 72 Horas, Menina de Ouro e Crash – No Limite, pelo qual levou o Oscar de Melhor Roteiro Original), o script merece elogios por se aprofundar no desenvolvimento de James Bond, que ganha traços inéditos como o fato de ter sido escolhido pelo MI6 por ser um garoto-problema, mas o que mais chama atenção (e aí devemos creditar também Daniel Craig) é a galeria de imperfeições do sujeito: dono de uma personalidade forte que combina um alto grau de egocentrismo com uma impulsividade alarmante, Bond também não hesita em exibir um largo sorriso ao ver um inimigo explodir em pedaços, revelando uma psicopatia surpreendente.
Muitos desses traços, aliás, são apontados por Vesper Lynd, bond girl vivida pela francesa Eva Green como uma das mulheres mais inteligentes que já passaram pela vida do espião. Não bastasse sua perspicácia em decifrar através de uma simples conversa quase toda a psique do colega, Vesper desafia Bond o tempo todo, seja intelectualmente ou emocionalmente além de se beneficiar da ótima química entre Green e Craig. A personagem, diga-se de passagem, mostra-se fundamental para a formação de Bond como agente, que sucumbe aos encantos da primeira mulher com quem passa um tempo a mais durante sua missão, um descuido que é retratado pelo roteiro como reflexo da inexperiência de James Bond e contribui para o desenvolvimento de uma casca que passa a blindá-lo futuramente. Não à toa, M é a primeira a notar que ele “aprendeu a lição” ao vê-lo afirmar que não confia em ninguém. Mais uma vez interpretada por Judi Dench, a chefe do Serviço Secreto, antipática com Bond durante a fase de Pierce Brosnan, ganha um relacionamento mais complexo com o agente e que viria a ser aprofundado nos filmes seguintes.
É difícil ignorar, no entanto, que diante de tantas qualidades narrativas e que enriquecem o protagonista, 007 Cassino Royale acabe tropeçando em obstáculos aparentemente intransponíveis. Afinal, a manutenção de Judi Dench como M durante os primeiros anos de Bond como 007 e numa história que se passa na atualidade (ignorando mais de quatro décadas de mitologia) causam estranheza e confundem a cronologia, ainda mais quando o romance de Bond e Vesper passa a lembrar 007 A Serviço Secreto de Sua Majestade e o impacto que este filme gerou (e que acaba sendo ignorado). Funcionando a médio prazo, as intenções da produção passam pela ideia de conceder um arco completo a James Bond e não apenas aventuras isoladas, o que explica o plano de lançar continuações diretas.
Ao final de 007 Cassino Royale, temos a sensação real de que acabamos de testemunhar a (re)construção de James Bond, o (re)início de uma lenda concebida para trilhar seu próprio caminho. Por isso, quando vemos o espião nos últimos segundos de projeção finalmente apresentar-se com sua frase clássica ao som do tema de John Barry e Monty Norman, tudo se encaixa com perfeição, concluindo o processo de formação da identidade de 007, não só o personagem, mas também a série.
NOTA 8,5
Espetacular explanação.Parabéns.