"Sombras de um Crime", um despretensioso noir para variar a carreira de Liam Neeson
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Sombras de um Crime", um despretensioso noir para variar a carreira de Liam Neeson


Saído da pena do escritor estadunidense Raymond Chandler no final da década de 30, Philip Marlowe ficou famoso por protagonizar aventuras pulp numa época em que o noir ainda não tinha virado uma nostálgica relíquia cinematográfica. Após uma série de livros bem-sucedidos, Marlowe invadiu as telonas ao protagonizar uma dezena de produções, sendo interpretado por nomes como os de Robert Mitchum (em dois filmes), Elliot Gould (no melhor filme), James Garner e, claro, o ícone do noir Humphrey Bogart, cujo magnum opus, O Falcão Maltês, é discretamente citado e escancaradamente ‘homenageado’ aqui. Marlowe, o filme, curiosamente não é adaptado de uma das histórias originais de Chandler, e sim do autor irlandês John Banville, responsável por emular o estilo do criador do detetive no romance A Loura dos Olhos Negros, publicado em 2014.

Assim como a obra que serviu de matéria-prima, o roteiro escrito por William Monahan (vencedor do Oscar por Os Infiltrados) e retrabalhado pelo diretor Neil Jordan, exala derivações, mas segue um caminho que beira a paródia ao empregar praticamente todos os clichês do subgênero a serviço de uma história que chama a atenção pelo descompromisso, como se todos os envolvidos só quisessem se divertir brincando de fazer um filme noir, especialmente Liam Neeson, uma escolha estranhíssima de elenco, mas que ao menos está saindo de sua zona de conforto, embora traga a Marlowe a mesma energia emanada por seus papéis quase sempre idênticos nas variações de Busca Implacável, o sucesso que redefiniu sua carreira.

É difícil, porém, apontar o público-alvo do projeto, pois se inicialmente é possível enxergar uma tentativa de seduzir os fãs do subgênero, principalmente aqueles viúvos de Bogart, o didatismo excessivo do roteiro faz parecer que o objetivo é fisgar os não-iniciados nesse universo. Chega a ser impressionante como Monahan e Jordan eliminam qualquer espaço para interpretações, matando o subtexto ao escancarar absolutamente tudo o que surge na tela, com informações apresentadas ao público em diálogos carregados de exposição. O que não seria um problema se esse fosse o único elemento marcante do estilo da dupla de roteiristas, que infelizmente pesa a mão ao ponto de menosprezar a inteligência do espectador, colocando coadjuvantes no caminho de Marlowe apenas com o intuito de mastigar o desenvolvimento da trama (como o detetive que aparece para traduzir termos médicos ou o motorista que ‘explica’ o final da história), chegando ao cúmulo de obrigar personagens a verbalizarem o que estão fazendo (“eu estou queimando os seus registros!”, grita uma figura enquanto... queima os registros de outra).

Pior é o descuido com que Marlowe é concebido pelos roteiristas, tão desesperados em fornecerem características que possibilitem um engajamento com o público, que acabam por incluir uma cena extremamente artificial em que um policial aliado tece um verdadeiro perfil durante uma conversa com o detetive (“eu sei que você vive como um monge, gosta de trabalhar até cair e não tem interesses próprios”, diz o sujeito como se estivesse lendo diretamente a descrição do personagem no roteiro). Além disso, as convenções são tão evidentes que fragilizam potenciais surpresas.

O que não impede o departamento de design de produção de aproveitar cada centavo do orçamento para brindar o espectador com veículos e edificações fiéis à época e construir locações que remetem a alguns clássicos do gênero, como o já citado O Falcão Maltês e Chinatown, aqui representada no escritório de Marlowe que é exibido num plano praticamente idêntico àquele do filme de Roman Polanski, dando destaque até mesmo para o ventilador. A fotografia segue o mesmo padrão, apostando num tom amarelado que concede um visual vintage ao filme e que já havia dado certo no game L.A. Noire, outro exercício de gênero, lançado em 2014. Por outro lado, o obrigatório jazz suave que domina a trilha sonora parece saída diretamente de um banco gratuito de músicas, já que o compositor David Holmes opta por melodias genéricas que ironicamente vão ao encontro da proposta fanfarrona da produção.

Povoado por personagens falastrões que se comunicam através do dialeto universal das divagações filosóficas (quando alguém abre a boca, é certo que ouviremos alguma reflexão em tom contemplativo), Marlowe não oferece um material particularmente interessante ao seu elenco, recheado de talentos experientes da indústria que se limitam a arquétipos concebidos sem a menor sutileza, mas que ao menos estão cientes disso (uma personagem acusa a outra de ser uma femme fatale, por exemplo). Enquanto isso, falta malícia à Liam Neeson, que aparenta estar mais interessado em passar bons momentos no set de filmagens do que oferecer uma performance minimamente cativante, seja ao lado de Diane Kruger (sua colega de cena em Desconhecido e com quem não possui a menor química aqui) ou a frente das câmeras do amigo Neil Jordan, conterrâneo que o dirigiu em Café da Manhã em Plutão. Há, todavia, um divertido momento metalinguístico em que Marlowe, após nocautear um grupo de inimigos, solta um “estou ficando velho demais para esse tipo de coisa”, remetendo a uma recente declaração do próprio Neeson sobre sua iminente aposentadoria dos filmes de ação.

Fazendo questão de explicar o final da história e sua previsível reviravolta através do motorista vivido pelo sempre carismático Adewale Akinnuoye-Agbaje (Filhos de Ninguém), Sombras de um Crime é um esquecível experimento de um cineasta já distante da fase em que nos presenteou com obras memoráveis como Valente (com Jodie Foster), Traídos Pelo Desejo (pelo qual venceu o Oscar de Melhor Roteiro Original) e Entrevista Com o Vampiro, mas que ao menos deve ter se divertido nas filmagens.



NOTA 5


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